Desconsolo (1295)
Ramon Llull (1232-1316)
Trad.: Cintia Morello e Ricardo da Costa
Revisão:  Ricardo da Costa (UFES)

Última atualização: 24 de outubro de 2002


Deus amoroso, com Vossa virtude começa este Desconsolo de Ramon Llull.

I

Deus, com Vossa virtude começo este desconsolo,
que se faz em forma de canção para que me conheças todo,
e que com ele conte os desvios e o logro
que o homem comete contra Vós, que nos julgareis no final em fogo.
Onde mais me consolas é onde tenho menos força no coração, 05
pois minha coragem é conduzida na dor e na indignação
e o consolo retorna em maior grau que o desconsolo.
Por isso, estando em trabalho ou recreação,
não há nenhum amigo que me dê satisfação,
somente Vós, porque O levo comigo em junção 10
e estou assim em tal sorte, que na queda e na ascensão
não vejo e nem ouço nada que me dê consolação.

II

Quando cresci e senti no mundo a vaidade,
entrei em pecado quando comecei a fazer maldade,
esquecendo Deus glorioso e seguindo a carnalidade. 15
Mas satisfez a Jesus Cristo, com Sua grande piedade,
apresentar-se a mim cinco vezes crucificado,
para que O relembrasse e ficasse enamorado
tão fortemente que lidasse com Ele quando pregasse
por todo o mundo dizendo a verdade, 20
de Sua Encarnação e de Sua Trindade,
pelas quais fui inspirado em tão grande vontade
que não amaria mais nada, e O honrasse.
Naquele momento comecei a servi-Lo com sagacidade.

III

Quando considerei do mundo sua condição, 25
e vi como muitos Lhe descrêem, e como era difícil ver um cristão,
concebi tal idéia em meu coração:
ir igualmente a prelados, reis
e religiosos com tal ordenação,
que acompanhassem minha passagem e pregação, 30
e que com ferro, fogo e verdadeira argumentação,
dessem de nossa fé tão grande exaltação,
que os infiéis viriam para a conversão.
E verdadeiramente, durante trinta anos, fiz dessa minha ação,
mas não consegui e fiquei em tamanha desolação 35
que freqüentemente chorei em minha aflição.

IV

Enquanto estava assim em dor
e freqüentemente considerava a desonra superior
que Deus recebe do mundo por falta de amor,
como o homem irado que foge do mau senhor, 40
fui a um bosque e ali estive em dissabor
tão fortemente desconsolado que o coração estava em dor,
mas porque chorava sentia dulçor.
Quando falava com Deus fazia-Lhe clamor,
pois tão pouco atendia o justo e o pecador, 45
no momento quando O pedem para tratar de Seu honor;
pois se mais desse ajuda e favor,
mais rapidamente eles converteriam o mundo a Seu valor.

V

Assim estava eu em melancolia,
quando olhei e vi um homem que vinha, 50
com um bastão em sua mão, uma grande barba tinha,
além de seus dois cilícios, que pouco vestia.
De acordo com seu comportamento, um eremita parecia,
e quando se aproximou de mim, perguntou-me o que tinha,
o porquê da dor que eu portava e de onde eu vinha, 55
e se ele em algo ajudar me podia.
Respondi-lhe que tal ira sentia,
que nem por ele, nem por outro me consolaria
pois de acordo com o que o homem perde, cresce a traição,
e disso que eu perdi, o que me dizer poderia? 60

VI

Ramon, disse o eremita, o que haveis perdido?
Por que não vos consolais no Rei da salvação
já que Ele basta a todos e por isso veio?
Pois não pode ter virtude aquele que O tem perdido
nem ser consolado, pois estais muito abatido. 65
E se vós não possuis quem vos ajude, um amigo,
dizei-me vosso coração, o que tendes sentido?
Pois se possuis coração fraco, ou estais vencido,
bem poderia ser que fosseis socorrido
por minha doutrina, tanto que, se estais vencido, 70
ela mostrará como vosso coração pode vencer o conflito
contra a ira e a dor, com a ajuda de Deus.

VII

Eremita, se eu pudesse levar à plenitude,
a honra que por Deus tratei tão longamente,
não teria perdido nada, nem teria clamado, 75
pelo contrário, recompensaria tanto que os converteria,
tirá-los-ia do erro, e o Santo Sepulcro
teriam os cristãos. Mas por falta
daqueles a quem Deus deu mais honramento
que não desejam ouvir e não O têm, 80
nem a mim, nem a minhas palavras, como um homem que loucamente fala
e nada faz de acordo com o entendimento,
porque eu perdi deles toda a procuração
que faço para honrar a Deus e salvar os homens.

VIII

Ainda vos digo que porto uma Arte Geral, 85
que novamente é dada por dom espiritual
para que o homem possa saber toda coisa natural,
conforme o entendimento atinge o sensual.
Ela vale para o Direito, para a Medicina e para todo o saber é legal,
e também para a Teologia, a qual me é a mais real, 90
para resolver questões, nenhuma quanto essa é tão fundamental
e para destruir os erros por razão natural.
Eu a tive perdida, pois quase nenhum homem a achou primordial.
Pois eu estive em pranto, em lágrimas e em ira mortal,
porque nenhum homem que perdesse tão grandioso cabedal 95
poderia ter mais gozo de nada terreal.

IX

Ramon, se vós fazeis isso que convém
procurar honrar a Deus e fazer o bem
mas não sois escoltado nem ajuda vem
daqueles que têm poder, por tudo isso não convém 100
que estejais desgostoso, pois Deus, que tudo vê,
vos dá tanta graça como se cumprisse
tudo o que pedistes, pois o homem que bem consegue
tratar de Sua honra obtêm para si
mérito, correção e dom, piedade e mercê. 105
Assim, comete grande pecado quem em seu coração retêm,
ira e desconsolo, apesar de Deus fazer a ele bem
que concorda com gozo, esperança e fé.

X

Ramon, de vossa Arte não esperais muito,
pelo contrário, estejais alegre e gozoso, 110
pois Deus vos deu, e a justiça e o valor
multiplicaram-se nos Seus leais amantes.
E se vós, neste tempo, sentir-vos amargoso,
em outro tempo melhor tereis tais ajudantes
que aprenderão e vencerão os erros 115
deste mundo, e farão muitos bons feitos célebres.
Por isso, vos peço, meu amigo, que o consolo esteja com vós,
e além disso, não choreis pelos feitos virtuosos
antes vos alegrais pelos feitos viciosos
e de Deus esperais graça e socorro. 120

XI

Ramon, por que chorais e não fazeis belo semblante
e vos consolais de vossa indisposição?
Como não o fazeis, me deixais hesitante
de estardes em pecado mortal, tão mal estado,
porque sois indigno de fazer algo em bom estado. 125
Deus não deseja ser servido por nenhum homem em pecado,
e se não fazeis o que desejais tanto
não é culpa daqueles de onde ides clamar.
Deus não deseja que vosso feito seja em vão,
se estais em pecado. Pois de bem, tanto e quanto, 130
não pode o homem pecador dele ser iniciante
pois o bem e o pecado em nada são semelhantes.

XII

Eremita, não me desculpo de ter pecado
mortalmente muitas vezes, e confessei-me disso.
Porém, depois que Jesus Cristo a mim foi revelado, 135
na cruz, conforme vos hei contado,
e em Seu amor meu querer foi confirmado,
não pequei ciente em nenhum mortal pecado.
Mas poderia ser que devido a isso que havia passado,
quando era servo do mundo, amando sua vaidade, 140
não estava ajudado por Jesus para fazer o bem.
Contudo, se não o fosse, cometeria erro e pecado
se Ele não me ajudasse depois que o amei
e por Seu amor o mundo desamparei.

XIII

Ramon, o homem negligente não sabe bem procurar 145
e está negligente pois não deseja muito lembrar
o que deve terminar. Por isso, tu me fazes duvidar
que o negócio público que desejas terminar
com muitos grandes senhores que não desejam te ajudar
se perca porque muitos não o desejam amar, 150
pois com pouco amor grande feito não se pode conduzir,
e se estás preguiçoso, de tudo deves te queixar,
e de tuas faltas não deves a outro culpar,
nem tu estando ocioso deves te desconsolar
por outro, mas por ti que não desejas te esforçar 155
em fazer todo teu poder quanto a Deus possas honrar.

XIV

Ermitão, vedes se estou ocioso
em tratar o bem público de justos e pecadores,
pois deixei mulher, filhos e possessões,
e trinta anos tenho estado em trabalho e languidez, 160
e cinco vezes à corte com minhas missões
tenho estado, e ainda, aos pregadores,
a três capítulos gerais, e aos menores
outros três capítulos gerais. E se vós
sabeis o que eu disse a reis e a senhores 165
e como tenho trabalhado, não estaríeis duvidoso
de mim, que tenha estado neste feito preguiçoso,
pelo contrário, teríeis piedade, se fosseis homem piedoso.

XV

Ramon, todo homem que deseja levar a cumprimento
algum feito que seja de muito grande estamento, 170
convém que saiba tratar discretamente.
Mas se vós não sois homem discreto nem entendedor
de acordo com o feito, se estais queixoso,
queixai-vos dos erros sob a repreensão
daqueles que são discretos e que fazem sabiamente 175
o que convém ao bom feito e à exaltação
da fé cristã. Por isso, vos aconselho brevemente
que estejais consolado em vossa falta
considerando que não estais sob o feito conveniente
e estou entre vós humilde e paciente. 180

XVI

Eremita, eu não tenho tal discrição
de feito tão importante para que baste apenas minha razão;
E se por minha ignorância vier a falhar
por falta de entendimento e por não ser discreto
segundo um feito tão grande, por isso desejo companheiros 185
que o ajudem a cumprir, mas não deseja pouco nem proveito
requer companhia, pelo contrário, estou só e abandonado;
e quando os vejo cara a cara, e começo a falar de meus propósitos,
eles não desejam escutar, antes dizem que sou louco
por dar-lhes tal sermão. 190
Porém, no juízo passará quem possuir discrição,
e quem de seus pecados encontrar o perdão.

XVII

Ramon, o homem avaro quando deseja fazer algo,
não consegue levar até o final o que pretende.
Porém, se vós sois um avaro e não desejais doar 195
nada que é vosso, para que a Deus possais honrar,
de vossa cobiça devereis clamar
pois ela vos impede de um bom feito procurar.
E se não podeis dar, pobre podeis estar
contra vosso negócio, e devereis pensar 200
que os senhores se inclinam mais por dar que pregar
Às preces que os homens fazem. Por isso, desejo vos aconselhar
que se puderdes dar, pensai ir rapidamente;
pois por dar, podereis tudo acabar.

XVIII

Eremita, estejais certo que a cobiça, 205
o dinheiro e as honras nunca dariam prazer ao meu coração,
e nesse negócio meu patrimônio
foi todo despendido e estive em tanta largueza
que meu filho está em pobreza,
porque de avareza não temo ser recriminado; 210
nem satisfazer aos homens,
pois não sou um homem rico, nem senhor de cidade;
assim, posso ser considerado inocente do que me tendes acusado.
porém, se fosse senhor de um império ou reinado,
daria todo o meu bem até que estivesse acabado: 215
pois homem que pouco dá não é bem escoltado.

- Continua -