O Livro dos Anjos (c. 1274-1283)
Ramon Llull (1232-1316)
Tradução: Eliane Ventorim (GPM I) e Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
Revisão: Prof. Esteve Jaulent (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio)

Da Quinta Parte, que é da glória dos Anjos

        Esta Parte é dividida em duas: a primeira é da glória que os anjos conhecem e amam em Deus. A segunda é da glória que os anjos têm em si mesmos. E como a primeira parte concorda com maior grandeza de bondade, de poder, etc., convém atribuir à primeira parte a primeira intenção da glória, e à segunda parte, a segunda intenção da glória.

        E como a glória dos anjos está presente nos atos de suas potências — e por aqueles atos entra em sua entidade de acordo com a proposição de sua essência, ser substância, virtude, matéria e forma, propriedades e condições — propomos tratar da glória dos anjos através dos atos de suas potências e através de duas intenções, seguindo a regra dos princípios ditos acima. Assim, primeiramente trataremos da primeira parte.

I. Da glória que os anjos conhecem e amam em Deus

        Deus é sua própria Essência, e em Deus a Bondade é Essência, a Grandeza é Essência e todas as Dignidades de Deus são Essência. Contudo, existe somente uma Essência em Deus, porque a Bondade, a Grandeza, etc. são uma Essência, uma mesma coisa, um mesmo Deus. Logo, convém que os anjos busquem com tão grande grandeza de bondade, de poder, de sabedoria, de amor, de justiça e de perfeição, amar e conhecer a Glória de Deus, que na Essência, na Bondade, etc. de Deus, conhecem e amam a virtude e a propriedade especificada, através da qual buscam lembrar, amar e conhecer a glória da essência, da grandeza, etc. Os anjos não poderiam fruir tal glória sem a virtude e a propriedade específica daquela glória, existindo uma distinção na especificação, sem distinção na essência da bondade, da grandeza, etc. da glória.

        Se os anjos entendessem a Glória existente na Essência de Deus sem especificar o Ente glorioso no bem da Bondade, em grande Grandeza, etc. — não distinguindo da Essência nem da Glória, nem da Bondade, etc. — o entendimento dos anjos seria imperfeito na grandeza da bondade, do poder, etc. E tal imperfeição tornaria seu desejo imperfeito na grandeza da bondade, do poder, etc. O mesmo seguir-se-ia em sua lembrança, e todos os seus três atos seriam desviados da natureza da inteligência, da vontade e da conveniência, do ente e da substância, da virtude, da forma e da matéria, das potências, das propriedades e das condições, e seriam destruídos todos os seus princípios, sendo desviados da primeira intenção para a qual foram criados.

        De acordo com o que está significado acima, convém considerar os atos de duas maneiras: um existe de acordo com a forma, outro segundo a operação. E como convém afirmar que a Glória é a maior Dignidade que os anjos podem entender e amar em Deus — de acordo com a grandeza da justiça, na bondade do poder, etc. — convém afirmar e considerar que na Glória de Deus os anjos entendem e amam os dois atos ditos acima, porque se não o fizessem, a inteligência, a vontade e a conveniência poderiam informar nos atos das potências a maior grandeza da bondade, do poder, etc., na Virtude da Glória que se renova continuamente  em Deus do que a Virtude do Ato que existe na Grandeza da Bondade, do Poder, etc., de Deus, e isso é impossível.

        Por tal impossibilidade está demonstrado que na Glória de Deus os anjos conhecem e amam dois atos, distintos em Essência. Porque assim como a luminosidade atua iluminando o ato para que sua virtude não esteja ociosa nem contrária à grandeza desse mesmo ato, da mesma forma e muito melhor, a Glória de Deus existe em Ato, porque existe e glorifica gloriosamente a Si mesma em Sua própria Essência, com a Grandeza de Sua Bondade, de Seu Poder, etc.

        Por isso, o Ato da Glória formal e operativo existe com uma imensa grandeza de bondade, de poder, etc., e de essência, glória, virtude. Este Ato pode cumprir e fazer conter  nos anjos os três poderes das potências em tão grande grandeza de glória que não cabe totalmente aí, e nem nossa consideração é bastante para considerar quão grande glória é a glorificação da gloriosa glória, de sua essência existente e da boa bondade, etc., eterna e infinitamente sem distinção de essência. Tal glorificação é feita com a grandeza do poder da glória e do glorioso, da essência e do ser, da bondade e do bom, etc., sem distinção de poder na essência, na glória, no bem, etc.

II. Da glória que os anjos têm consigo

        Pela Grandeza da Justiça de Deus convém que os anjos, amando e conhecendo a Deus, tenham glória em si mesmos, recebendo a glória através dos atos das potências, na virtude da substância, pela matéria, pela forma e pelos entes até à inteligência, vontade, conveniência, etc., completando suas propriedades e condições, tudo isso em um instante, sem diversidade de tempo. Porque assim como as plantas vêem a virtude do sol e do ar pelos ramos e raízes, pois sem o sol e o ar as raízes não poderiam frutificar no tronco e nos ramos, da mesma forma a glória não poderia entrar nem vir para a natureza e a virtude dos anjos sem iniciar na memória, no entendimento e na vontade.

        Logo, está manifestado, como a glória dos anjos forma-se pela glória que conhecem, amam e lembram em Deus. Por isso, sua glória existe pela segunda intenção e descendo da primeira. E como a glória que os anjos têm e sentem existe para que a primeira glória seja conhecida e amada, isso é, a Glória que Deus tem em Si mesmo, dura sem fim sua Glória através da primeira glória de acordo com a grandeza da justiça.

        Se os anjos fossem criados principalmente para ter glória em si mesmos e não para conhecer e amar a Glória de Deus, seus méritos não bastariam para ter glória perdurável, pois seus méritos são limitados e finitos na grandeza da bondade, do poder, etc. Mas como foram criados para conhecer e amar a Glória de Deus que existe sem fim, eles não cessam  de amar e conhecer aquela Glória. Por isso, a Justiça de Deus, que os criou para que fruíssem Sua Glória os faz ter glória por todos os tempos.

        A grandeza da glória dos anjos está na memória, no entendimento, na vontade e em tudo que pertence à entidade dos anjos. Pois a memória lembra na entidade dos anjos que por todos os tempos lembrará a glória; e lembra nos anjos, do qual é potência, que o entendimento entenderá a glória por todos os tempos; e a memória lembrará que nos anjos a vontade terá toda aquela glória que desejou ter por todos os tempos. Por isso, a memória tem uma glória tão grande que não se pode contar nem escrever, pois relembra e lembrará da glória  em si mesma, no entendimento e na vontade, sem nenhuma interrupção e sem fim.

        O entendimento dos anjos entende a glória que existe com a grandeza da bondade, do poder, etc., em tudo que pertence à natureza da glória e em toda a natureza de si mesma, da memória, da vontade e de tudo que pertence à entidade do anjos. E como esta glória entende que todos os tempos entenderá sem nenhuma interrupção, da mesma forma entende que tão grande glória entende, tem entendido e entenderá que o entendimento do homem nesta vida não a pode entender totalmente. Logo, quem poderia dizer a grande glória que os anjos apreendem e entendem em si mesmos?

        E se a glória que os anjos entendem de si mesmos possui alguma falta  em seu entender, quanto mais existe falta para entender a glória que os anjos entendem em Deus, que entendem maior glória que em si mesmos! E Deus não entenderia tão grande glória como em Si mesmo se entendesse que não tem entendimento, não entende e não entenderá em si mesmo a glória infinita, eterna, na grandeza da bondade, do poder, etc.

        A vontade dos anjos deseja a glória que tem e que possui, e a deseja sem nenhuma interrupção, isto é, perduravelmente. E como deseja que o entendimento entenda como eles têm glória por todos os tempos, e como o entendimento entende tudo o que a vontade ama da glória, por isso, a vontade tem tanta glória, pois assim como o raio de sol é mais resplandecente e não cessa de luzir, da mesma forma e muito melhor a glória não cessa na vontade, nem sua natureza e seu ato existem sem glória, e houve, há e haverá toda a glória que deseja ter em si mesma e em tudo o que a entidade e a natureza dos anjos contêm. Logo, quem poderia recontar a glória dos anjos?

        Ao lembrar, entender e amar sua própria glória, os anjos não têm tanta grandeza quanto têm ao lembrar, entender e amar a Glória de Deus, sua própria glória e a glória de todos os anjos e santos do paraíso. E mais: ao lembrar, entender e amar a glória que os anjos têm na grande Justiça de Deus, esta pune por todos os tempos todos os demônios e todos os homens infernais, com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc. E como convém existir nos anjos esta glória de acordo com a grandeza da justiça, da bondade, etc. de Deus, e segundo convém a grandeza da glória com a grandeza da justiça, da bondade, etc., dos anjos, logo, não convém nenhuma falta para contar toda a glória que aos anjos convém, glória que Deus nos entrega por Sua misericórdia.

        O entendimento dos anjos não cessa de entender a Glória de Deus e de si mesma, porque se cessasse tal entendimento, cessaria sua glória da mesma forma como cessaria em Deus a Natureza Divina se cessasse seu Entendimento na Grandeza de bonificar, magnificar e glorificar, etc. E como é impossível que cesse em Deus o Ato de Sua Natureza Divina, e que o entendimento dos anjos possa ter glória cessando seu entendimento de entender, é revelado secretamente neste livro o que a Glória de Deus não gostaria de especificar, porque seria colocada em questão qual das três leis conviria melhor a este pequeno livro, de acordo com a Glória de Deus, dos anjos e a pena dos demônios.

Da Sexta Parte, que é da pena dos demônios

        Esta Parte está dividida em duas: a primeira é da pena que os demônios têm pela primeira intenção; a outra é da pena que têm pela segunda intenção. Logo, primeiramente falaremos da primeira parte.

I. Da pena que os demônios têm pela primeira intenção

        Como a Grandeza existe na Bondade, no Poder, etc. de Deus, criou os anjos para que fosse conhecida e amada, mas estes, por seus atos, tornaram-se demônios, e por sua culpa surgiram maus espíritos porque incontinenti sua criação amaram a si mesmos pela primeira intenção e amaram a Glória de Deus pela segunda. E como eles amaram a si mesmos pela primeira intenção e amaram a Glória de Deus pela segunda, a qual foram criados para que a conhecessem e amassem pela primeira intenção a Glória de Deus, tiveram culpa e foram desviados da intenção para a qual foram criados.

        Logo, por amor a isso, a Justiça de Deus os puniu a serem demônios por todos os tempos. Pois assim como a pêra cai por sua podridão e por sua natureza, da mesma forma os anjos malignos foram expulsos e desviados por todos os tempos da intenção para a qual foram criados pela grande simplicidade de sua essência e natureza.

        O entendimento do demônio entende Deus na Grandeza da Bondade, do Poder, etc. E sua vontade não ama aquela Grandeza porque o entendimento, a memória e toda a entidade e a natureza do demônio que é potência se sentem aprisionados e mortificados. E como a vontade não segue o uso para a qual foi criada, está invertida e desama o que o entendimento entende em Deus e em Suas obras. Por sua vez, a memória, o entendimento e a vontade não podem seguir nenhuma regra ordenada em si mesmas.

        Por isso, todas as três potências têm atos contrários às suas naturezas, umas contra as outras, e por essas contrariedades, a inteligência e a vontade não são convenientes e o ente é substância e sujeito com uma virtude corrompida, onde existe uma forma imperfeita e uma matéria sujeitas às potências e aos atos corrompidos. Por isso, existe enorme grandeza de malícia no ato de cada potência, contra a grande e imensa grandeza da bondade, do poder, etc. Logo, quem poderia cogitar a pena que os demônios têm pela primeira intenção? Porque assim como sua promessa foi a grande grandeza da glória, da mesma forma é grande a pena que sustentam.

        Como os demônios foram criados anjos para conhecer e amar a Deus por todos os tempos, convém que sua pena dure eternamente, porque se houvesse fim, seguir-se-ia que sua culpa poderia concordar com a Grandeza que Deus tem na Justiça, com a menoridade da Bondade, do Poder, etc., e isso é inconveniente.

        Assim, está demonstrado como os demônios são obstinados em sua malícia por todos os tempos, suportando a paixão em sua primeira intenção, e tal paixão não pode ser cogitada, porque a vontade dos demônios deseja ser semelhante em glória à Glória divina, da mesma forma como desejou nos tempos que pecou primeiramente, e o entendimento entende que a vontade quis ter glória por todos os tempos e nunca a teve, e entende que se a vontade amava mais a Glória de Deus do que aquela que desejava para si mesma, ela, a memória e toda a entidade dos anjos teriam glória.

        O que o entendimento entende da vontade, a vontade desama na pena, e o entendimento entende aquela pena porque entende, porque a vontade ama o que não pode ter e porque desama o que o entendimento entende. Por isso, existe tal pena espiritual na memória. Logo, quem poderia imaginar a pena que os demônios suportam, entender a glória que perderam e a qual nossa vontade deseja que nosso entendimento não entenda? Quem poderia entender a pena que existe neles, o que a vontade deles deseja e desama, a Memória deles lembra e entende que sua vontade todos os tempos desejou o que não teve e desama o que têm por todos os tempos?

        É tão grande a pena dita acima que não podemos dizer nem escrever, e nosso entendimento não é o bastante para entender, nem nossa memória é suficiente para lembrar. Logo, Deus, por Sua misericórdia, guarda-nos de Sua pena e de Sua companhia.

II. Da pena que os demônios têm de sustentar pela segunda intenção

        Assim como o ferro sai queimando da forma totalmente branco e em brasa, aquecendo o ar e tudo o que toca, da mesma forma, e muito mais fortemente, existe pena e malícia nos demônios, que são objetos dos atos de suas potências. Pois assim como o fogo, a água, o ar e a terra contrastam-se por corrupção nos corpos do homem doente ou morto, da mesma forma, e muito mais, contrastam-se a memória, o entendimento e a vontade no demônio, e em tal contraste existe paixão em toda aquela entidade, que supõe tudo o que sua memória lembra, seu entendimento entende e sua vontade odeia. Logo, como sua memória lembra, seu entendimento entende e sua vontade desama tantos objetos, quem pode considerar esta pena? E quem pode considerar o tempo sem fim que convém àquela pena durar incessantemente?

        A pena espiritual é amar o mal em seu inimigo e saber existir naquele um grande bem, e também querer multiplicar o mal onde está multiplicado o bem. Os demônios têm esta pena, porque desamam todo o bem nos anjos benignos e nos homens justos. Por isso, têm pena, porque os desamam no bem e os amam no mal. Tal pena existe pela segunda intenção pois eles foram criados para que pela segunda intenção amassem-nos e pela primeira intenção amassem a Deus.

        Os demônios têm pena pelo mal que os homens pecadores cometem, pois desejariam que tal mal fosse maior. E como o entendimento entende que quanto maior mal faz o demônio, mais cresce sua pena pela Justiça. Por isso, pela pena, sua vontade deseja fazer o mal, têm pena pelo mal não ser maior, porque seu entendimento entende o mal e porque não entende uma mal maior. Logo, como isso é uma pena tão grande, falta contar o trabalho que os demônios sustentam e que são contrários à Justiça de Deus.

        Pela Graça e pela Benção de Deus, acabamos este pequeno livro DOS ANJOS, o qual tratamos brevemente para que entendas muito fortemente e compile os livros pelos quais possamos conhecer e amar nosso Senhor Deus.