O Livro dos Anjos (c. 1274-1283)
Ramon Llull (1232-1316)
Tradução: Eliane Ventorim (GPM I) e Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
Revisão: Prof. Esteve Jaulent (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio)

Da Terceira Parte, da fruição que os Anjos têm em Nosso Senhor Deus

        Esta parte é dividida em sete, as sete Propriedades dos Anjos com as quais Eles contemplam e fruem as sete Dignidades de Deus e seus Atos seguindo a natureza que possuem por Essência e Entidade, Substância, Potência e Ato. Como os Anjos possuem e conservam essa ordenação dita acima, fruem e contemplam a Deus e Suas obras nas quais Deus existe em Si mesmo e fora de Si mesmo e os Anjos são criados e condicionados a conhecer e amar essas obras. Logo, primeiramente diremos da Bondade.

I. Da Bondade

        A Bondade, que é Propriedade nos Anjos, é criada para que frua a Bondade que em Deus é Dignidade, pois existe na Bondade de Deus maior Grandeza de Poder, de Sabedoria, etc., do que na Bondade dos Anjos. Pela maior Grandeza segue-se que a intenção final pela qual existe a Bondade nos Anjos é para que frua a Divina Bondade. E se isso não fosse a intenção final, seguir-se-ia que a Justiça, a Sabedoria e o Amor de Deus seriam contra Sua própria Grandeza e contra a Grandeza da Bondade, do Poder, da Perfeição que são uma mesma coisa. Segundo o que foi dito acima o princípio significa que a Bondade dos Anjos é obrigada a fruir o bem que a Bondade de Deus possui em Si mesma do que o bem que Sua obra infunde fora de si mesma nas criaturas, pois o maior bem é aquele que existe na Divina Bondade, que é Deus, do que aquele bem que Deus cria e fez produzir nas criaturas e nas Suas obras.

        Logo, como isso é necessário, segundo a Grandeza da Justiça na Bondade, no Poder, etc. — e porque os Anjos fruem a Bondade de Deus nos bens criados, isto é, na Entidade dos Anjos, dos homens, das Virtudes, das Propriedades e dos acidentes que são bens, e os céus, os elementos e as espécies — convém que fruam a Divina Bondade em algum ou alguns bens nos quais a Divina Bondade exista em Si mesma, do qual bem ou bens convêm que os Anjos tenham conhecimento, e do qual bem ou bens convêm algum ou alguns Nomes próprios. Porque, se a Bondade de Deus não existisse em Si mesma, nem algum bem ou bens com distinto ou distintos Nomes e vocábulos, seria coisa impossível os Anjos terem um conhecimento tão grande e poder amar tanto como fazem pelos bens que Deus criou, os quais têm Nomes próprios e vocábulos.

        E se não pudessem, conhecer e amar tanto a Bondade pelo bem que possui e convém ter em si mesma — como pelo bem que existe fora de si mesma — a intenção final acima dita seria vã e inútil, porque a falta de Bondade criada dos Anjos na Grandeza do Poder, da Justiça, da Sabedoria, da Perfeição na Bondade de Deus, é impossível. E por essa impossibilidade está demonstrada que da necessidade convém que a Bondade de Deus tenha em Si mesma algum bem próprio ou bens próprios, e tal bem ou bens sejam fruídos pelos Anjos conduzindo o conhecimento àquele bem ou bens, e que aquele bem ou bens especifique bens próprios nos Anjos com os quais possam fruir a Bondade Divina em seu bem ou bens Divinos específicos, os quais bens especificados especificam-se na Bondade dos Anjos, bens que são Sua Essência e seu Ente, Substância, Potências, Atos, Propriedades e Condições, sem os quais bens criados e especificados a Bondade dos Anjos não poderia fruir a Divina Bondade à fruição para a qual foi criada.

II. Da Grandeza

        A Grandeza existe na Essência dos Anjos, que são um Ente grande em Matéria e em Forma, e são Substância grande em Virtude, Potências e Atos. Estes Atos são grandes em Bondade, Poder, Sabedoria, Amor, Justiça e Perfeição. E a Grandeza dos Anjos frui a Grandeza que Deus tem em Bondade, em Poder, em Sabedoria, em Amor, em Justiça e em Perfeição, fruindo a Grandeza de Deus por Si mesma. Porque se a Grandeza dos Anjos é grande fruindo a Grandeza que Deus tem em Bondade, em Poder, etc., convém que seja grande em fruir a Grandeza de Deus com a Divina Bondade, o Divino Poder, etc.

        Porque, se não fosse assim, seguir-se-ia que a Grandeza existiria em Deus para a segunda intenção e a Bondade, o Poder, etc., existiriam também para a primeira intenção, e isso é impossível, por que não pode existir em Deus uma Dignidade maior que outra e Deus tem que ser um Ente infinito em Grandeza de Essência, de Substância e de Virtude para que sua Grandeza não seja compreendida pela Inteligência dos Anjos — que seria compreendida se existisse para a segunda intenção, que convém com a menoridade.

        E porque a Grandeza de Deus é incompreensível, é grande em uma mesma coisa com a Bondade, do Poder, etc., porque é um Ente infinito em Essência pela obra da Bondade, do Poder, etc.

        E se Sua obra fosse finda, estaria acabada a Grandeza na Bondade, no Poder, etc., e o Ente seria finito na Grandeza da Virtude e do Ato. E tal fim privaria a Grandeza em Deus, e tal privação é impossível. Por essa impossibilidade, convém existir algum Nome próprio que especifique a Grandeza de Deus através de Sua obra infinita. Porque sem tal Nome, a Inteligência dos Anjos não poderia ser grande para conhecer a infinitude da Divina Grandeza, antes compreenderia aquela Inteligência, e tal compreensão destruiria a fruição que os Anjos devem ter na Grandeza com a Justiça da Bondade, do Poder, etc.

III. Do Poder

        O Poder que existe nos Anjos para fruir o Poder de Deus existe pelo Poder Divino que influencia nos Anjos o Poder com o qual fruem em si mesmos a Bondade, a Sabedoria, etc. Por isso, é especificado no Poder dos Anjos o Poder da Bondade, da Sabedoria, etc. e o Poder que é propriamente e simplesmente Poder, ao qual convém um Nome e Ato próprio.

        Logo, os Anjos fruem o Poder de Deus pela unidade do Poder com a Bondade, a Grandeza, etc., pelos quais Nomes e Propriedades que estão na Bondade, no Poder, na Grandeza, etc., os Anjos entendem e amam alguma ou algumas obras que estão em Deus e nas Divinas entidade e natureza com as quais buscam o Poder de Deus na Obra e no Poder que são Deus. Pois se isso não fosse assim, seguir-se-ia que existiria em Deus um Poder através do qual existiria nas criaturas o Ato da Bondade, da Sabedoria, etc., e seria bom que pudesse existir na criatura e não seria bom que existisse em Deus o Ato de Si mesmo e da Bondade, da Sabedoria, etc., privando da Grandeza na Bondade, na Sabedoria, etc. em Si mesmo, e esta privação é impossível. Através dessa impossibilidade está demonstrado a forma com a qual os Anjos fruem o Poder de Deus — que tem Poder Próprio, Essência Divina, e são uma mesma coisa em Bondade, em Sabedoria, etc.

        Com essa Unidade e com esse Poder, Deus pode fazer com sua Bondade tudo o que é Bom, e o Poder, que é Bom, pode fazer tudo o que é Poder. O mesmo se segue do Poder na Grandeza, na Sabedoria, no Amor, na Justiça e na Perfeição em Si mesmo. E por essa conseqüência ocorre que, assim como o homem pode andar com seus pés, obrar com suas mãos e entender com seu entendimento, da mesma forma e muito melhor, o Poder de Deus pode com a Bondade, a Grandeza, etc., e podem a Bondade, a Grandeza, etc., com o Poder.

        Logo, tu poderias ter e obrar tudo o que desejas se teu poder fosse uma mesma coisa com tua bondade e se teu desejo pudesse ter o poder que desejasse ter ou fazer. Assim, Deus pode tudo o que é bom, grande, sábio, amável, justo, perfeito em Si mesmo, na Bondade, na Grandeza, etc., que são a mesma coisa. E se Deus tivesse tal poder em Si mesmo sem obrar, seu Poder seria Potência sem Ato na Bondade, na Grandeza, etc., e existiria Ato nas criaturas, o qual Ato seria maior em si mesmo do que na Bondade, na Grandeza, etc., de Deus, e isso é impossível, porque estaria revelado o segredo e a maneira com a qual os Anjos fruem o Divino Poder e podem fazer grandes bens, os quais fazem com a Grandeza do Poder, da Sabedoria, do Amor, da Justiça e da Perfeição, através da Virtude da obra que Deus pode e faz em Si mesmo, sem a qual Bondade os Anjos não poderiam fruir perfeitamente o Poder de Deus nem fazer o que fazem com o Poder da Bondade, etc.

        E se o Poder em Deus fosse maior sem a Obra com a qual Ele Obra, seguir-se-ia que existiria nos Anjos um Poder maior pela Potência do que pelo Ato na Bondade, na Grandeza, na Sabedoria, etc., e este Poder seria mais semelhante ao Poder Divino na privação do Ato do que com o próprio Ato, e isso é impossível, pela qual impossibilidade está demonstrada a Obra do Poder de Deus.

IV. Da Sabedoria

        A Sabedoria dos Anjos não pode fruir perfeitamente a Sabedoria de Deus se tivesse falta de Bondade, de Grandeza, de Poder, etc., e tal falta seria sabida se a Sabedoria de Deus não tivesse em si tão grande Obra da Bondade, do Amor, da Justiça, da Perfeição como pode Seu Poder. E se a Sabedoria em Si mesma obra entendendo a Si mesma, convém que o faça entendendo sua Bondade, sua Grandeza, seu Poder, etc. Porque se não o fizesse seria distinta em Essência com a Bondade, a Grandeza, o Poder, etc. E se obra assim na Bondade, na Grandeza, no Poder, etc., como em Si mesma, convém obrar entendendo, obrando, bonificando, magnificando, possificando, etc. Também convém que Sua obra seja igual em Si mesma, assim como a humanidade é igual nos homens quando humaniza a criação em espécie de homens iguais.

        E se o entendimento do homem fosse igual em grandeza à sua natureza, ele faria o homem entender porque é homem. E se a Sabedoria de Deus não conhecesse em Si mesma a Grandeza da Bondade, do Poder, etc. — com a qual faz grandes bens, poderes, etc. em Si mesma — seria maior em nobreza e em perfeição não saber tais obras, e isso é inconveniente. Assim, por tal inconveniência, está demonstrado que a Sabedoria de Deus, ciente de Si mesma, obra igual obra ou obras em Si mesma. Por essa obra e obras a Sabedoria dos Anjos tem maior Virtude, Poder, Amor, etc., em saber maiores obras que menores. E se não existisse nenhuma obra ou obras na Sabedoria de Deus, a Sabedoria dos Anjos seria maior em Bondade, em Poder, etc., que a Sabedoria de Deus e isso é inconveniente. Esse é o princípio pelo qual se pode demonstrar a maneira que os Anjos fruem a Divina Sabedoria e a influência que a Sabedoria de Deus influi em sua Sabedoria.

V. Do Amor

        O Amor de Deus ama mais em Si mesmo sua Entidade, sua Bondade, sua Grandeza, seu Poder, etc. que nos Anjos, que não fazem o Amor, a Bondade, a Grandeza, o Poder, etc., caso contrário existiria uma contrariedade entre Sua Grandeza e Sua Justiça, e a Grandeza seria conveniente com a injúria, porque o Amor de Deus amaria o bem específico na Bondade dos Anjos, isto é, a Inteligência, que é bem, etc.

        A este bem convém um Nome e significados próprios através dos quais sejam entendidos e amados distintamente com a Vontade, etc., que são bens. Também convém que na Bondade de Si mesma a Inteligência ame o bem especificado na obra do Amor e do Bem, e o mesmo convém à Grandeza, ao Poder, etc., pois o Amor de Deus ama enormemente a Grandeza dos Anjos, e isso é um grande entendimento, grande em Justiça, em Poder, etc. E se o Amor de Deus não amasse o Ato da Bondade em sua Bondade, conviria, de acordo com a Justiça, não amar em Si mesmo o Ato da Vontade, porque se o fizesse, amaria mais o Ato da Vontade que o Ato da Bondade.

        E se o Amor ama o Ato da Vontade para que ame o Ato da Bondade, convém que também ame o Ato da Bondade para amar o Ato da Vontade. Pois se não amasse dessa forma através da Bondade, do Poder, etc., não existiria Grandeza na Perfeição da Vontade, da Bondade, etc., e isso é impossível, por que não existe menoridade nas Dignidades para que o bem que o Amor ama na Bondade seja mais distante do mal, para que a Grandeza que o Amor ama seja mais distante da pequenez, etc.

        Pois assim como o Ente é gerado e tornado cúmplice, da mesma forma o Amor de Deus tem maior Amor à Sua Bondade quando ama aquele Ato que é bem, o que não faria se desamasse em Sua Bondade o Ato que é bem. E se naquele bem o Ente desamasse o Nome especificado do bem, desamaria também a Grandeza do conhecimento naquele Ato de Bondade, pelo qual desamor sua Vontade estaria contrária à Sua Grandeza, e isso seria inconveniente na Bondade e nas outras Dignidades. Assim, está demonstrado a forma pela qual os Anjos fruem o Amor de Deus com o Amor que têm na Bondade, na Grandeza, etc.

VI. Da Justiça

        Na Grandeza da Justiça dos Anjos convém que seus Atos de Bondade, de Grandeza, de Poder, etc., sejam iguais, porque se não o fossem, a Grandeza da Justiça seria uma Forma imperfeita, e não existiria nos Anjos de maneira perfeita a Justiça para Eles fruírem a Justiça de Deus, que é igualmente grande em Bondade, em Grandeza, etc., que torna Deus único. E por essa unidade e igualdade de Grandeza na Justiça da Bondade, etc., de Deus, convém que Sua Justiça especifique, distinga e concorde magnificando e justificando o Ato da Bondade, da Grandeza, do Poder e da Perfeição como faz com o Ato da Sabedoria e do Amor quando especifica e magnifica intensamente a distinção de entender e desejar. Assim, o entendimento humano entende a existência de diversas obras entre o Entendimento e o Desejo de Deus.

        Deus entende tudo o que é bem e mal e ama o bem e desama o mal através de Sua Justiça. E se não fizesse isso, a Divina Justiça concordaria com a menoridade, e seria mais própria à injúria e distante da Grandeza de Si mesma, e isso é inconveniente, por que a Justiça é igualmente grande em todas as Dignidades, nos Atos dos quais convém existir tão grande Ato de Justiça, como é a Justiça, as Dignidades e seus Atos. Em Deus não existe diferença entre a Dignidade e Seu Ato, nem entre as Dignidades. Tampouco existe em Deus distinção privada entre os Atos e suas relações, pois seria impossível que a Justiça Divina justificasse ser amante e amada, ciente e sábia, bonificante e bonificada, etc., e Ela privaria todas as Dignidades dos Atos na privação de seu Ato, e teria maior Poder nas Propriedades dos Anjos que em Si mesma e na Bondade, na Grandeza, etc., estando dentro de Si mesma a injúria, e isso é impossível e contra a fruição e a alta contemplação que os Anjos, de acordo com a Justiça, convém ter na Justiça de Deus.

VII. Da Perfeição

        Convém que a Perfeição dos Anjos frua a Perfeição de Deus com Perfeição de Bondade, de Grandeza, etc., porque se a fruísse com imperfeição de Bondade, de Grandeza, etc., fruiria contra Si mesma, e tal fruição estaria em contradição. E se os Anjos amassem com a injustiça a maior Perfeição em Deus sem o Ato de Perfeição que Deus lhes deu — amando a perfeição e tendo o Ato de dar Perfeição de Bondade, de Grandeza, etc., em Deus — conviria à Sabedoria de Deus maior sapiência de Sua Perfeição sem Ato que com o Ato da Bondade, do Poder, etc., e isso estaria em contradição.

        E se estamos afirmado que existe Ato na Perfeição da Bondade, da Grandeza, do Poder, da Justiça, perguntam: qual é esse Ato? Por qual Nome próprio esse Ato é especificado, entendido e amado pelos Anjos e pelos homens? E se dizem que não cabe Ato na Perfeição da Bondade, da Grandeza, etc., por que existe Perfeição, respondemos e dizemos que não cabe que a sabedoria entenda a si mesma mais que isso, pois já é sábia, e que o amor a ame mais, pois ela já é suficientemente amada.

        E quem nega que existe a Perfeição, nega eternamente a infinidade da Bondade, da Grandeza, etc., e nega que a Perfeição seja maior em Grandeza, em Bondade, etc.; nega também que a luminosidade seja maior iluminando que sem iluminar, e o fogo por aquecer que por potência, e afirma que a intenção final seja a Potência e não o Ato, e isso é contraditório. Por isso, está demonstrado que negar a Perfeição e a Perfeição de Deus é a mesma coisa, porque se não o fosse, haveria em Deus composição de Grandeza e menoridade, Perfeição e imperfeição e isso é impossível, e por essa impossibilidade está demonstrado como os Anjos, com sua Perfeição de Bondade, da Grandeza, etc., fruem e contemplam a Perfeição de Deus no Divino aperfeiçoamento da Bondade e do bonificar, etc.

        De muitas maneiras poderíamos dizer e manifestar a alta fruição e contemplação que os Anjos, com Suas Propriedades, têm das Dignidades de Deus. Mas porque nós, com a ajuda de Deus, traduzimos este livrinho do árabe, secreta e brevemente demos o entendimento para significar os princípios com os quais os Anjos fruem e contemplam a Deus.

Da Quarta Parte, da locução dos Anjos

        Esta Parte é dividida em três: a primeira é da locução que cada Anjo tem consigo, a segunda é da locução que os Anjos têm uns com os outros e a terceira é da locução que os Anjos têm com os homens. Logo, trataremos da Primeira Parte.

I. Da locução que os Anjos têm consigo

        Assim como o homem mentalmente usa as potências da alma em seus atos, lembrando com a memória, entendendo com o entendimento e amando com a vontade os objetos que apreende, da mesma forma os Anjos falam consigo quando relembram, sentem e amam distintamente, tomando para Si os objetos distintos por essência e por obras, seguindo a natureza que possuem de Inteligência, de Vontade e de Conveniência em Sua Entidade, Unidade e Substância e em suas Propriedades e Condições. Porque assim como sensualmente o homem certifica outro homem o que lembra, ama e entende com suas palavras, da mesma forma os Anjos intelectualmente falam consigo quando Sua Memória lembra o que o Entendimento entende, a Vontade ama e o Entendimento entende por que a Memória lembra e a Vontade ama, e a Vontade ama por que o Entendimento entende e a Memória lembra.

        Os Anjos benignos falam consigo e seguem a ordem de Sua Essência e a natureza de Sua Entidade e de Sua Virtude nas Propriedades e Condições, recebendo a influência das Dignidades Divinas. Por sua vez, os Anjos malignos que falam consigo, fazem tudo ao contrário. Assim como no homem a natureza da potência sensitiva exalta a natureza da potência vegetativa, a natureza da potência racional exalta a natureza da potência sensitiva e esta exaltação se forma pela participação e comunicação das potências em ser uma suposição, um ente — que é o homem — da mesma forma os Anjos, pela Inteligência que têm em Sua natureza, entendem e aprendem a Si mesmos.

        E o mesmo acontece com a Vontade e a Conveniência, que se comunicam consigo no Ente que é o Anjo, que, por sua própria natureza, entende, ama e concorda o que convém à Justiça concordar com a Memória, o Entendimento e a Vontade através da Bondade, da Grandeza, do Poder, da Sabedoria, do Amor e da Perfeição. E esta disposição ordenada é a locução dos Anjos benignos. Quando essa disposição é desordenada significa a locução dos Anjos malignos, que é desordenada por que Sua Memória, Seu Entendimento e Sua Vontade não seguem a natureza da Essência nem as Potências se ordenam para existir Atos nas Propriedades, pelo contrário, existem Atos contra as Propriedades e as Dignidades Divinas.

II. Da locução que os Anjos têm com os outros

        Esta Parte é dividida em três: a primeira trata das palavras que os Anjos benignos têm com os outros; a segunda, das palavras que os Anjos benignos têm com os Anjos malignos; a terceira, das palavras que os Anjos malignos têm com os outros. Logo, primeiramente diremos da primeira parte.

II.1. Das palavras que os Anjos benignos têm com os outros

        Provamos a existência dos Anjos e sua Essência (Inteligência, Vontade e Conveniência), e também provamos Suas Propriedades, através das quais a Essência e a Natureza dos Anjos formam as palavras que os Anjos têm entre si. Pois enquanto os Anjos entendem pela Inteligência, amam pela Vontade e ordenam-se pela Conveniência do que amam e entendem, se comunicam por objeto a outros Anjos para que sejam amados e entendidos através daqueles no amor que têm de Deus e de suas obras, com Bondade, Grandeza, Poder, Sabedoria, etc.

        Porque assim como o sol clarifica a luminosidade do fogo e a converte para seu resplendor, da mesma forma os Anjos que estão mais próximos da Majestade Divina comunicam sua Inteligência, Vontade e Conveniência em Bondade, Grandeza, etc. à Vontade, Inteligência e Conveniência aos Anjos que não estão tão próximos da Divina Majestade com a Bondade, Grandeza, etc., clarificando-os com Sua Memória, Entendimento, Vontade e Propriedades. Tal clarificação são as palavras angelicais  como são as palavras humanas aquelas com as quais uns homens entendem outros quando lembram, amam e entendem. Pois se através da palavra sensual o entendimento, que é potência intelectual, entende, quanto mais uma Inteligência pode entender os Anjos através de outra, pois sua natureza é simplesmente e absolutamente composta de Inteligência.

        E assim como alguns homens conhecem outros por diversas descrições em rostos e ao lembrando que existem diversas qualidades, da mesma forma alguns Anjos conhecem outros através das graças distintas em maioridade de Bondade, de Grandeza, etc. Por isso, para manifestarem-se, uns têm palavras com outros, um Anjo com outro, comunicando-se no que entendem, lembram e amam com a Bondade, a Grandeza, etc., de Deus.

        Logo, assim como o Amor se multiplica entre dois amantes quando cada um demonstra ao outro seu Amor, da mesma forma o conhecimento dos Anjos é maior quando cada um demonstra mais ao outro o que conhece de Deus, de Si e de outro Anjo.

II.2. Das palavras que os Anjos benignos têm com os malignos

        Quando o demônio se manifesta aos Anjos mostrando que entende a Essência, as Dignidades e os Atos de Deus que são convenientes a Ele, os Anjos falam com o Demônio e este manifesta aos Anjos a natureza contrária de Sua Inteligência, Vontade e Conveniência, e usa de sua memória, entendimento e vontade contra a Grandeza da Bondade, do Poder, etc. O demônio manifesta aos Anjos sua grandeza que é contrária à Grandeza que Deus tem em Bondade, Poder, etc.

        Logo, assim como o homem justo manifesta-se com palavras justas, demonstrando sua sabedoria e justiça ao homem injusto, que se demonstra injusto com palavras injuriosas ao homem justo, e cada um conhece o outro pela justiça e pela injúria, da mesma forma os Anjos e o Demônio se conhecem pelas obras que possuem em suas Potências, de acordo com o que foi dito acima.

        Quando os Anjos entendem com o Entendimento de Deus que são Atos de Sua Bondade — através do qual bonificam, magnificam e possificam  o que entendem e o mesmo de todos os Atos das Dignidades, sendo todos os Atos indistintos pois as Dignidades comuns são uma Essência, uma Propriedade — Eles falam com o Demônio, clarificando e manifestando o que entendem de Deus. Por sua vez, o Demônio fala com os Anjos mostrando que recebe aquelas palavras contra a Grandeza, a Bondade, etc.

        Logo, assim como dois homens se olham em dois espelhos, um à direita e outro à esquerda, opondo-se quando um diz que sua face é da qualidade mostrada no espelho à direita e o outro diz que, pelo contrário, sua face é da qualidade mostrada conforme a disposição do espelho à esquerda, da mesma forma os Anjos e o Demônio se falam contrastando no que um mostrou ao outro nos Atos de suas Potências, conhecendo-se através de tais Atos, girando-os sobre as Propriedade, uns Atos de acordo com sua regra e natureza, outros, contra sua regra e natureza.

II.3. Das palavras que os Demônios têm com os outros

        Assim como dois homens maus se falam para manifestar sua má vontade com a qual desejam fazer algum mal e ao mesmo tempo concordam em fazê-lo, da mesma forma os Anjos malignos têm palavras intelectuais para fazer más obras, usando dos atos de suas potências contra a Bondade, a Grandeza, etc. Logo, como o Demônio não é suficiente para fazer o mal, sua vontade se manifesta contrária àquilo que entende da Bondade, da Grandeza, etc., de tal forma que informa e imprime o conhecimento de sua vontade no entendimento de outro Demônio, para que, ao mesmo tempo, eles sejam contrários a alguma Grandeza de Bondade, de Poder, etc., particular.

        Se algum Demônio sabe que não poderá fazer o mal que o outro Demônio propôs, ele manifesta ao outro seu entendimento para que perverta aquele objeto ou sujeito onde quer fazer o mal. E quando manifesta seu entendimento, também manifesta sua vontade e os atos de suas potências contra a bondade, a grandeza, etc., naquele objeto que pode causar dano. Pois assim como a Potência é conhecida pelo Ato, da mesma forma um Demônio conhece a vontade e o entendimento do outro pela contrariedade que existe em algum objeto e sujeito contra a Bondade, a Grandeza, etc., e esta contrariedade se forma nas palavras intelectuais.

III. Das palavras que os anjos têm com os homens

        Esta Parte é dividida em quatro: a primeira, trata de como os anjos falam com os homens justos; a segunda, como eles falam com os homens injustos; a terceira, como os demônios falam com os homens justos; a quarta, como os anjos falam com os homens injustos. Logo, primeiramente diremos da primeira parte.

III.1. Das palavras que os anjos têm com os homens justos

        Assim como o entendimento humano entende através de palavras sensuais, da mesma forma de acordo com a natureza da inteligência, que Deus influí a Grandeza de Sua Bondade, de Seu Poder, etc., convém que o entendimento entenda as coisas sensuais pela inteligência, porque se não o fizesse, seguir-se-ia que o entendimento teria maior proporção e participação com a natureza corporal do que com a natureza da inteligência que é seu principio e sua própria natureza, e isso é impossível.

        Por essa impossibilidade está provado que o entendimento dos anjos sem qualquer meio, mas com a Graça de Deus, entende e apreende as coisas sensuais e as palavras que os homens dizem, através das quais os homens falam aos anjos de acordo com o que entendem por suas palavras, comunicando-se com eles, participando da grandeza de sua bondade, poder, etc., com a grandeza da bondade, do poder, etc., dos homens.

        Pois assim como a imaginação e o entendimento do homem participam nas palavras sensuais, a imaginação imaginando e o entendimento entendendo, da mesma forma a bondade dos anjos e a bondade do homem participa quando os anjos comunicam sua bondade, etc., à bondade, etc., do homem. Por tal comunicação falam-se a bondade dos anjos e do homem, etc., no entendimento de cada um, na vontade e na memória com a grandeza da bondade, do poder, etc.

        E assim como as três potências da alma que se falam mentalmente em teoria, sem palavras sensuais, o homem dá origem às suas palavras mentais pela potência, hábito e ato, e no hábito está o segredo das palavras que os homens têm secretamente com os anjos por que não conhecem suas palavras senão nos atos das potências. Os quais conhece, segundo o que convém ao homem na bondade, na grandeza, etc., a alguma obra e fim particular.

        Por isso os anjos falam com o homem para que possa concertá-lo para aquele fim e que o homem pelo ato da potência na bondade, na grandeza, etc., revele as palavras que têm na potência e no hábito de tal maneira que lhe ajudem com os anjos, para multiplicar a grandeza de sua bondade, poder, etc., e para que melhor possa receber a influência  da Bondade, da Grandeza, etc., de Deus. Assim como umas palavras sensuais falam com outras palavras sensuais, da mesma forma as palavras mentais da alma falam com as dos anjos.

        Assim como o homem que não poderia falar com outro homem sem audição ou sem signos, da mesma forma os anjos e a alma não poderiam falar sem que o anjo se aproximasse muito fortemente da alma. Pois a alma é impedida de entender as palavras dos anjos por que o corpo, que é corrompível, é um instrumento corrompido, que convém ter a alma os atos de suas potências.

        Assim como os olhos corporais não podem ver quando não têm espaço com ar, da mesma forma o entendimento humano não pode entender as palavras dos anjos, pela grande proximidade em que estão sua inteligência e sua bondade, sua grandeza, etc., por isso o homem não sabe distinguir suas palavras das palavras dos anjos, e se pudesse distinguí-la, seria por aquela distinção corrompida pelo livre arbítrio do homem, na qual corrupção estaria corrompida a grandeza da justiça nos anjos e no homem contra Grandeza da Bondade, do Poder, etc. (de Deus).

        Muitas vezes acontece que dos anjos falarem com os homens em sonhos ou através de palavras sensuais, tomando os anjos no ar a forma de homem, e isso, os anjos fazem para revelar algumas coisas ou para que os homens possam distinguir suas palavras das palavras dos anjos, e que naqueles homens sejam multiplicadas em grandeza, fé, esperança, caridade, justiça, prudência, fortaleza e temperança.

III.2. Das palavras que os anjos têm com os homens injustos

        Os anjos amam a intenção final para a qual o homem foi criado, e por isso assim como o espelho em si mesmo representa as figuras da face aos olhos corporais, da mesma forma a vontade dos anjos representa com sua inteligência as obras contrárias que os homens pecadores fazem contra a intenção final para a qual foram criados. Assim os anjos desamam os atos das potências do homem que se revoltam contra as sete virtudes que são a fé, a esperança, etc., e contra as sete propriedade dos anjos, e tais atos concordam com os sete pecados mortais.

        Logo, assim como o mestre que faz o navio  formando a madeira de acordo com a qualidade que convém a forma do navio, da mesma forma intelectualmente, salvando contudo o livre arbítrio no homem, os anjos formam lembranças, cogitações, temores, desejos ao entendimento humano de tal maneira que a vontade do homem ame com virtudes e tenha em ódio os vícios e os pecados.

        E quando o homem não deseja apreender aqueles objetos que os anjos lhe representam, pelo contrário contrasta-os, e aos anjos contrastam os atos das potências dos homens, então surgem palavras mentais contrastantes entre os anjos e o homem, da mesma forma que existem sensualmente entre um homem bom e outro mal, desejando o homem bom corrigir o homem mal. Os atos das potências dos homens são mais próprios às potências que à inteligência dos anjos, por que o homem entende muito mais vezes em suas considerações e na teoria de suas potências, que os anjos, e naquela maior quantidade está o segredo dos atos das potências que os anjos não pode entender.

        Por isso os anjos se esforçam com a grandeza de sua bondade, seu poder, etc., contra a grandeza de sua bondade e maldade que o homem tem contra a bondade e o poder, a sabedoria, o amor, a justiça e a perfeição. Por esse contraste muitas vezes os segredos são manifestados aos anjos para que corrijam os homens pecadores através de suas obras.

III.3. Das palavras que os demônios têm com os homens justos

        Assim como os anjos e o homem justo falam-se com a bondade, a justiça, a sabedoria, o amor, a perfeição e a caridade, da mesma forma o demônio e homem justo falam-se pelo contrário, o demônio com a malícia e o homem com bondade, da memória, do entendimento e da vontade. Logo, assim como o vento se forma no ar e nas orelhas onde a potência auditiva tem seu ato, da mesma forma, pelo contraste do demônio e do homem justo a respeito da intenção final para a qual o homem foi criado, da qual o demônio deseja desviar o homem, formam-se as palavras com as quais o homem apreende a inteligência do demônio contra a vontade, que inconveniente com a inteligência.

        Assim como se contrastam o entendimento do homem que entende a verdade e a vontade quando desama, e porque o demônio sente paixão no contraste da inteligência e da vontade sobre os atos das potências da alma do homem justo, por isso apreende aquelas palavras do homem, pelas quais entende os objetos sobre os quais se revoltam as palavras, e entende as virtudes que o homem tem contra os vícios que o demônio deseja naquele homem.

        O demônio tenta o homem de muitas maneiras para que possa entender seus pensamentos pelas coisas sensuais ou intelectuais. Ele faz tais tentações aos poderes da alma, às vezes por um vício, às vezes por outro, de acordo com o vício que melhor pode convir os atos das potências do homem com sua vontade, a inteligência apreende as palavras do homem, o qual não entende especificadamente as palavras do demônio por serem tão obscuras e secretas por causa da grande proximidade da inteligência do demônio e do entendimento. Por isso, o homem ignora aquelas palavras, e também pela confusa contrariedade muito próxima que existe entre a vontade do demônio e a vontade do homem.

        Logo, o homem justo muitas vezes se defende com uma virtude em outra, para que melhor possa contrastar o demônio e por esta arte e doutrina pode o homem conhecer as palavras do demônio e os objetos ao qual o aconselha, amando ou odiando e considerando que nos atos de suas potências é feito algum contraste que com vícios convém contra as virtudes.

III.4. Das palavras que os demônios têm com os homens injustos

        Através da inteligência o demônio apreende em sua vontade a conveniência que existe entre sua vontade e a vontade do homem injusto. Por isso suas palavras concordam com o homem injusto contra a grandeza da bondade, do poder etc., as  quais o homem entende serem especificadas com as palavras de seu pensamento nos atos das potências. Mas porque o demônio é mais sutil que o homem, entende especificamente suas palavras intelectivas e mentais e mais, as palavras sensuais do homem. através dessa simplicidade e a natureza de sua inteligência, que é uma propriedade muito perceptiva, o demônio pode entender mas que o homem, e assim desvia-lo das boas obras, salvando contudo a existência do livre arbítrio no homem.

        E quanto mais fala com ele, mais lhe cega o entendimento, removendo com suas palavras especificas a bondade, a grandeza, o poder, etc., e representando-lhe um objeto abstrato da bondade, etc., nos atos de suas potências e especificando-lhe objetos contra a grandeza da bondade, do poder, etc.

        Como a bondade, a grandeza, etc., perdem suas formas no demônio, ele fala com o homem pecador contra a grandeza, a bondade, etc., e porque o homem pecador é desviado da intenção para a qual foi criado nos atos de seus poderes, ele fala com o demônio contra a grandeza da bondade, do poder, etc., como faz o som do sino quebrado contra o som que faz o sino inteiro. Logo, assim como o som do sino quebrado significa a imperfeição do sino, da mesma forma a palavra do demônio e do homem pecador significa que o contrário da grandeza de bondade, de poder, etc.

        Muitas são as maneiras segundo as quais os anjos têm suas palavras, mas nós brevemente tratamos dos princípios pelos quais pode ser dada doutrina para conhecer as palavras dos anjos e a maneira segundo a qual falam.