O Livro dos Anjos (c. 1274-1283)
Ramon Llull (1232-1316)
Tradução: Eliane Ventorim (GPM I) e Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
Revisão: Prof. Esteve Jaulent (Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio)

Da Segunda Parte (cont.)

II. Do Ente Angelical

        Esta Parte é dividida em três: a primeira é do Nome, a segunda é da Forma e a terceira é da Matéria. Logo, primeiramente direi do Nome.

II.1. Do Nome

        A Bondade convém com maior Perfeição em Grandeza que em pequenez. Por isso, o Amor deseja que, da Inteligência, da Vontade e da Conveniência, um Ente seja ajustado com o Entendimento em Amor e concordância para criar a Bondade, a Grandeza, etc., da Inteligência, da Vontade e da Conveniência.

        E porque tal desejo de Amor está com a Justiça da Bondade, do Poder, etc., a Inteligência entende mais a si mesma se um Ente existe com Vontade e Conveniência, do que se existisse por si mesmo sendo uma Propriedade una sem nenhuma participação da Vontade e da Conveniência. E porque maior Grandeza de Bondade, Poder, etc., existe com a Inteligência, a Conveniência convém à Grandeza, que, por sua vez entende a Inteligência e deseja a Vontade e o Poder de Deus, que possui a Bondade, a Grandeza, a Sabedoria, o Amor e a Justiça, e completa a Grandeza, a Vontade e a Conveniência num Ente Angelical, no qual as três Propriedades são ao mesmo tempo sua Essência.

        E se isso não fosse assim, seguir-se-ia que a Bondade de Deus seria contra a Grandeza da Inteligência, da Vontade e da Conveniência, e a Inteligência entenderia imperfeitamente a Bondade, a Grandeza, etc., e entenderia a Vontade e a Conveniência contra a Vontade do Amor, da Justiça, do Poder, da Grandeza, da Perfeição e da Sabedoria, que são Dignidades para a fruição das três Propriedades criadas com a Grandeza da Bondade, etc.

        E porque tal Entendimento seria inconveniente à Vontade, à Grandeza da Bondade, do Poder, etc., a Inteligência entende que os Anjos são ajustados e unidos por todas as três Propriedades num Ente onde estão todas as três Propriedades e Virtudes.

        A Grandeza da Bondade, do Poder, etc., privariam os Anjos se tivessem alguma outra natureza ou entidade que não fosse derivada da Inteligência, da Vontade e da Conveniência, porque dessa forma os Anjos não teriam tão grande Poder para Entender, Desejar, Concordar e Amar a Deus e suas Dignidades ou a si mesmos e à suas Propriedades.

        Porque assim como o homem que ignora e cessa de amar e de ter Conveniência entre sua Vontade e seu Entendimento — porque seu corpo é composto de outra natureza que não é somente intelectual, mas antes corporal — da mesma Forma os Anjos teriam a ignorância e a privação do Amor e da Conveniência se tivessem outra Essência que não fosse derivada da Inteligência, da Vontade e da Conveniência.

        E porque a maior Grandeza e a maior pureza em Entender, Amar e Convir estão na Vontade de Deus através da Grandeza da Justiça, é demonstrado na Vontade de Amar dos Anjos — que amam a Bondade, a Grandeza, o Poder, etc. — que a Essência dos Anjos está somente nas três Propriedades pessoais.

        Os Anjos têm o Poder de Entender e Amar a Bondade, a Grandeza, etc., de Deus, e podem tornar conveniente e concordar seu Entendimento e seu Amor com a Bondade, a Grandeza, etc. No entanto, os Anjos não possuem nenhum Poder que possa ser bonificado na Bondade de Deus , nem magnificado na Grandeza, nem tornar possível o Poder, e o mesmo acontece com as outras Dignidades de Deus.

        Mas, pela Bondade de Deus, os Anjos podem bonificar em seu Entendimento o Amor e a Conveniência. Logo, também podem bonificar a Grandeza de sua Bondade, Poder, etc., e o mesmo podem fazer no homem, contudo, salvando no homem seu livre arbítrio. Assim, está demonstrado que os Anjos não têm necessidade de ter mais de três coisas em sua Essência, porque aquelas lhes bastam para o motivo pelo qual foram criados, isto é, Entender e Amar a Deus, e concordar seu Amor e seu Entender com a Bondade, etc.

        E porque a Justiça de Deus e Seu Poder são uma mesma coisa, o Poder de Deus — que é Uno com Seu Desejo — não quer que os Anjos tenham nenhuma superfluidade que faça com que sua Grandeza concorde melhor com a Bondade, o Poder, etc.

        A Sabedoria não contradiz a Perfeição em Deus. E se os Anjos fossem compostos somente pela Inteligência, pela Vontade da Conveniência ou as duas partes somente, e não fossem compostos da terceira (a Conveniência), seguir-se-ia que a Sabedoria contradiria a Perfeição da Grandeza no uso que a Sabedoria possui nos Anjos, que são suas criaturas. Isso porque a Perfeição dos Anjos existe em maior Grandeza porque os Anjos possuem todas essas três Propriedades, o que não aconteceria se os Anjos fossem formados somente por uma ou por duas destas Propriedades. E porque é impossível que a Sabedoria e a Perfeição — que são uma mesma coisa em Deus com a Grandeza, a Justiça, etc. — se contrastem nos Anjos ou em alguma criatura, está demonstrado — na Sabedoria, na Perfeição, na Grandeza, na Bondade, etc. de Deus — que é necessário que os Anjos sejam totalmente compostos das três Propriedades, porque se não o fossem, seguir-se-iam todos os inconvenientes acima ditos.

        Provamos que as três Propriedades formam uma entidade, um Ente, que são os Anjos. E como naqueles Anjos não são convenientes, nem mais nem menos, as Propriedades pessoais, fizemos esta prova através das Dignidades Divinas, das três Propriedades e das sete Condições dos Anjos.

II.2. Da Forma

        O Amor não seria conveniente com a Grandeza dos Anjos se os Anjos fossem privados de uma Forma comum às três Formas de sua Essência. Porque a unidade sem a Forma não poderia ser conveniente com a Grandeza da Bondade, etc. E porque o Amor é uma Dignidade que ama a Grandeza dos Anjos, por isso — e segundo a Grandeza da Bondade e da Justiça que com o Amor são uma coisa una — o Amor deseja que a Inteligência, a Vontade e a Conveniência sejam uma Forma comum à toda a Essência dos Anjos, a qual Essência seria conveniente a toda Virtude de cada uma das Propriedades, de tal maneira que os Anjos são muito elevados por sua Forma multiplicada no ajustamento e mescla de toda a forma da Inteligência, da Vontade e da Conveniência.

        Porque assim como os elementos nos corpos compostos são derivados de suas simples formas — o que resulta numa forma comum a todos aqueles elementos — e aquela forma é mais nobre que cada uma das simples formas e mais nobre que todas ao mesmo tempo enquanto estão na finalidade para a qual se movem todas as formas que constituem e dão existência aos elementos, assim a Forma Angelical é maior por ser Una e não ser cada uma das Formas. E as três Formas seriam iguais à forma comum se cada uma pudesse ter a Grandeza de usar a Bondade, o Poder, etc., como os Anjos. E porque não o fazem, está demonstrado que a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., convém melhor existir à unidade da forma simples em um Ente do que na forma pessoal sem comunicação com outra forma.

        Logo, está demonstrado que a Grandeza das Dignidades é mais elevada que a grandeza das criaturas, pois não existe em Deus nenhuma coisa maior que outra. Assim, Deus demonstra sua Grandeza por semelhança e por dessemelhança da forma, sendo a Grandeza criada maior em uma forma que em outra.

II.3. Da Matéria

        A Justiça incriada magnifica a Grandeza criada da Forma angélica comum, pois lhe dá Matéria sujeita à Inteligência, à Vontade e à Concordância. Porque assim como a madeira que edifica a nau materializa a teoria na prática através das formas dos barcos, e o homem justo — que dos atos de sua memória, entendimento e vontade, que são formas — cria a matéria quando a informa com a fé, a esperança, a caridade, a justiça ou alguma outra virtude que existe na forma, também a Forma dos Anjos possui abaixo de si as três Formas que estão abaixo da Matéria, dando Forma a Eles em seu Ato de Desejar, Entender, Convir, e fazendo com que desejem e entendam a Bondade, a Grandeza, o Poder, etc.

        Por isso, todas as três Formas — que são a Essência dos Anjos — são Formas porque são distintas em Propriedades pessoais e empregam uma Forma comum como os quatro elementos, segundo o que já dissemos, e admitem ser Matéria quando, através delas, os Anjos podem ter Vontade livre de Desejar, Entender e Convir com a Inteligência e a Conveniência na Bondade, na Grandeza, etc.

        E se as três Propriedades pessoais não se comunicassem desta maneira — para ser Matéria à Forma Universal — seria coisa impossível que a Forma tivesse seus Atos com liberdade de Justiça na Grandeza da Bondade, etc., porque desejaria, entenderia e conviria de forma constrangedora segundo a natureza de sua Essência. E se assim o fizesse, seria coisa impossível que aí existisse a Grandeza da Justiça na Bondade, no Poder, etc., e a Justiça de Deus não usaria de sua Grandeza na Bondade, na Grandeza, etc. dos Anjos.

        Assim, esse pouco uso seria contra a Grandeza da Bondade, do Amor, da Sabedoria, da Perfeição, que existem em um Deus, e esta contrariedade é inconveniente. Desta maneira, está demonstrado que existem nos Anjos a Matéria acima dita, a qual é Forma resultante e convertida em Matéria para que os Anjos sejam compostos de Matéria e Forma sem a qual não poderiam ser constituídos nem estabelecidos como um Ente Angelical.

        E porque Sua Matéria é mais simples e mais obediente à Forma porque é composta de Formas que se comunicam sem ir e vir nem perder suas Formas para constituir uma Matéria, os Anjos são mais simples que quaisquer outras criaturas, e Sua Matéria se convém mais com Suas Formas que quaisquer outras criaturas.

        E como isso é assim, existe diversidade na Matéria Angélica entre um Anjo e outro, diversificando-se por Formas segundo a disposição da Matéria Angelical, que existe segundo a Essência própria de cada um dos Anjos, que, por sua vez, não existe da Matéria de outro Anjo e que se submete à Forma segundo a distinção da Bondade de um Anjo, que é distinta da Bondade de outro Anjo. O mesmo se segue da Grandeza, do Poder, etc. E se isso não fosse assim, haveria nos Anjos falta de Grandeza por Essência e por Ato contra a Perfeição que a Grandeza de Deus possui em Bondade, Poder, etc.

III. Da Substância

        Esta Parte é dividida em três: a Virtude, as Potências e os Atos. Logo, primeiramente trataremos da Virtude.

III.1. Da Virtude

        A Perfeição não se contradiz com a Grandeza da Virtude, antes a completa com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc. Logo, como os Anjos são perfeita Virtude pela Essência, Unidade, Forma e Matéria, são um Ente unido de Inteligência, Vontade e Conveniência — que são Virtudes — e são composto de Forma e Matéria — que também são Virtudes — convém que aquela Virtude — que são os Anjos — unidos pelos virtuosos princípios acima ditos sejam iniciados por distintas Virtudes que são Potências as quais agem nos distintos Atos virtuosos.

        Porque assim como a Inteligência, a Vontade e a Conveniência se comunicam fortemente e ao mesmo tempo formam um Ente simples que é uma mesma Virtude, Forma, Matéria e Pessoa, da mesma forma, segundo a Perfeição da Virtude, convém que ela seja diversificada nas Potências e nos Atos, estando a Virtude una pela unidade da Pessoa. E isso convém pela Grandeza da Justiça de tal modo que esteja por suas obras na Grandeza da Bondade, do Poder, da Sabedoria e do Amor para tornar objeto às Dignidades de Deus entendendo e amando aqueles Anjos.

        Assim, temos conhecimento que os Anjos são Substância, pois sua Virtude está abaixo dos Atos das diversas Potências. Logo, pelas diversas Potências, as obras não poderiam existir sem que a Virtude se diferenciasse pelas Potências e pelos Atos, estando a Virtude em uma pessoa, isto é, um Ente, que é aquela mesma Substância.

        Porque assim como o homem, que é um ente constituído em sua essência por matéria e forma, e é substância porque está abaixo das potências e acidentes — e o ente e a substância não se multiplicam em duas pessoas, antes são uma mesma pessoa — da mesma forma os Anjos são Substâncias através das Potências e são um Ente pela Essência.

III.2. Das Potências

        A Bondade e a Grandeza do bem possuem maior concordância no Poder, na Sabedoria, no Amor, na Justiça e na Perfeição do que na menoridade do bem. E porque a Bondade e a Grandeza de Deus desejam Convir nos Anjos através da Justiça no grande uso do bem, o Amor deseja que, assim como a Inteligência se comunica distintamente para constituir um Ente que são os Anjos, da mesma Forma sua Virtude flui através da Virtude comum que são os Anjos e as Substâncias distintamente, e as Potências possuem distinta obra, ofício e entendimento.

        O Amor desejou o mesmo da Vontade e da Conveniência, isto é, que o Desejo fosse Vontade e a Conveniência fosse Memória. Isso por que a este nome Memória, atribuímos a Conveniência, porque não existe outro vocábulo que lhe seja tão conveniente — porque a Memória recebe, retém, ajusta e concorda com o que é conveniente através do Entender e do Desejar no Entendimento e na Vontade. E a Memória, o Entendimento e a Vontade se convém e se revolvem.

        Logo, como o que foi dito acima é desejado pelo Amor segundo a Grandeza de Bem — estando significadas as Potências pela Grandeza de Bem, a qual não estaria nos Anjos se seus Princípios não fluíssem distintos da Virtude comum quando se comunicam distintamente naquela Virtude — existiria menoridade de Bem se as suas Propriedades pessoais se perdessem e fossem confusas, pela qual perda e confusão seria impossível nascer Potências onde os Atos fossem diversos. E sem tal diversidade, uma obra não poderia existir e ser grande na Bondade, no Poder, etc., para receber as Dignidades de Deus através dos objetos.

III.3. Dos Atos

        Deus não teria a Grandeza da Justiça na Potência que é o Entendimento dos Anjos se não lhes desse o Ato de Entender, pois a Potência é vã sem o Ato. O mesmo se segue do Desejo — que é o Ato da Vontade — e do Lembrar — que é o Ato da Memória. E porque a Justiça de Deus é grande em Bondade, Poder, etc., logo, convém que os Anjos sejam entendidos, amados e lembrados.

        E se os Anjos fossem constrangidos a Entender, Desejar e Lembrar a Bondade, a Grandeza, etc., de Deus, a Justiça conviria com a menoridade contra a Grandeza criada da Bondade, do Poder, etc., contra as quais Propriedades a Justiça seria contrária em Grandeza se os Anjos não pudessem ter a Grandeza em seus Atos. E porque tal contraste seria impossível nas Dignidades de Deus, é demonstrado por essa impossibilidade que existe liberdade nos Anjos para Entender, Amar e Lembrar.

        E se os Anjos incessantemente e em todos os tempos não entendessem, amassem e lembrassem em Grandeza as Dignidades de Deus, a Grandeza da Perfeição estaria privada na Sabedoria, no Amor, na Justiça, no Poder e na Bondade, que são Dignidades, distinguindo os princípios e a intenção final na qual os Anjos foram criados, contra a qual Grandeza de uso estaria a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e isso é impossível.

        E se os Anjos fossem malignos por possuírem Atos contra a finalidade para a qual foram criados sem que fosse alterada a Grandeza de Deus na Bondade, no Poder, etc., seguir-se-ia maior uso da Grandeza, do Poder, etc., o qual uso têm as Dignidades nos Anjos malignos que em Grandeza entendem, desamam e lembram a Grandeza criada da Bondade, do Poder, etc.

        Se o uso das Dignidades fosse maior nos Anjos malignos, e os Anjos benignos não fruíssem com a maior Grandeza da Bondade, Poder, etc. as Dignidades de Deus — e se o uso acima dito e a maior fruição fossem desamáveis à Vontade de Deus para que os Anjos malignos não existissem — a Vontade do Amor seria contrária à Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e isso é impossível.

IV. Das Propriedades dos Anjos

        Muitas são as Propriedades dos Anjos, mas nós trataremos de algumas brevemente, que são: a Bondade, a Grandeza, o Poder, a Sabedoria, o Amor, a Justiça e a Perfeição. Essas Propriedades são criaturas e imagens intelectuais onde estão representadas as Dignidades Divinas, que são inteligíveis e amáveis. Por essa inteligibilidade e amabilidade, a Justiça, a Sabedoria e o Amor de Deus têm ordenado às Propriedades criadas que as Dignidades incriadas sejam entendidas e amadas. E se isso não tivesse sido ordenado, as Dignidades seriam contra a Grandeza da Bondade, do Poder, da Justiça, da Perfeição, que são Dignidades amáveis e inteligíveis, e essa contrariedade é impossível.

        E por essa impossibilidade, as Propriedades são demonstráveis. E primeiramente desejamos tratar da Bondade criada, e depois das outras Propriedades, e neste tratamento prosseguiremos com as Divinas Dignidades.

IV.1. Da Bondade

        A Bondade, que é Deus, representa a Si mesma quando usa a Grandeza do Poder, da Sabedoria, do Amor, da Justiça e da Perfeição nas criaturas. Por isso, a Bondade, que é uma Dignidade, usa a Bondade criada da Grandeza no Poder, na Sabedoria, no Amor, na Justiça, na Perfeição que são Propriedades dos Anjos. E porque a Grandeza da Bondade convém com a Liberdade Angelical em desejar amar as Dignidades de Deus, a Divina Bondade exalta a retidão da Bondade Angelical que existe na Vontade, tão rápido quanto foi criada, quando persevera de maneira perdurável o Ato de Amar e Conhecer a Divina Bondade.

        Logo, como isso é assim, a Bondade dos Anjos é uma Propriedade que existe  e com a qual Eles fruem a Bondade de Deus e a usam nas criaturas. Porque assim como é dado o calor ao fogo para aquecer o ar, da mesma forma é dada a Bondade aos Anjos para que Eles façam boas obras. E assim como calor é propriedade natural no fogo, da mesma forma a Bondade dos Anjos é Propriedade natural para que Eles desejem usar dela no Ato de fruir a Bondade Divina. Isso acontece de tal maneira que, assim como o fogo não cessa de aquecer, os Anjos bons não cessam de fazer boas obras, as quais são grandes em Poder, Sabedoria, Amor, Justiça, Perfeição.

IV.2. Da Grandeza

        A Grandeza de Deus é infinitamente grande em Bondade, Poder, Sabedoria, Amor, Justiça e Perfeição. Por isso, criou nos Anjos a Propriedade que é a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., a qual Grandeza não teria sido criada se os Anjos fossem constrangidos a Conhecer e Amar a Grandeza que Deus tem em sua Bondade, Poder, etc.

        E porque ao Ato da Grandeza incriada convém criar maior Grandeza de Bondade, Poder, etc., a Grandeza de Deus — que se convém com a Bondade, o Poder, a Justiça — desejou que os Anjos amassem e conhecessem a Deus de maneira livre e não constrangida, para que Seu Amor e Seu Conhecimento fossem grandes na Grandeza de Bondade, do Poder, etc., e não o seriam se os Anjos fossem constrangidos a Conhecer e Amar a Grandeza que Deus possui em Bondade, Poder, etc.

        E se a Grandeza que os Anjos possuem em Bondade, Poder e etc., fosse desamável à Deus, a Grandeza de Seu Amor seria contrária à Grandeza de Sua Justiça, etc., e isso é impossível. E por essa impossibilidade está demonstrado que a Grandeza que os Anjos benignos possuem em Bondade, Poder, etc., é uma Propriedade inseparável, porque se fosse um acidente separável, a Bondade, o Poder, etc., que são Deus, estariam contra a Grandeza Divina, e isso é impossível. Por esta demonstração, existe nos Anjos benignos a Propriedade da Grandeza em Bondade, etc.

IV.3. Do Poder

        O Poder incriado dá a forma de sua semelhança nos Anjos segundo o que a entidade angelical recebe da influência do Poder Divino. Por isso, o Poder dos Anjos — que existe na Bondade, na Grandeza, na Sabedoria, etc. — é Propriedade para que seja grande em Bondade, em Sabedoria, etc., e esta Grandeza não existiria se não fosse uma Propriedade. E se os Anjos tivessem seu próprio Poder, ele seria maior do que é, porque teria tudo o que poderia querer sua Vontade e seu Amor e seu Poder seriam uma mesma coisa, mas isso não convém segundo a Justiça, mas somente na Entidade de Deus, onde Seu Poder e Querer são uma mesma coisa, pela qual unidade Deus pode tudo o que Seu Amor deseja.

        Logo, como isso é assim, o que os Anjos podem em Bondade, em Grandeza, etc., o podem com a Propriedade de Seu Poder em Bondade, Grandeza, etc., graças à influência do Poder de Deus Neles. E por essa influência e semelhança que os Anjos recebem do Poder incriado acontece a Propriedade do Poder Angelical, e o Poder de Deus o faz assim de maneira semelhante a Si mesmo, como o pai faz o filho segundo o que é suficiente em sua natureza para que o filho receba a semelhança de seu pai.

IV.4. Da Sabedoria

        A Sabedoria descende da Inteligência com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., sendo a Sabedoria Propriedade da Inteligência. E estando a Sabedoria na Potência do Ato do Entendimento ela convém com a Grandeza, na Bondade, etc. E se a Inteligência não tivesse Ato próprio na Bondade, na Grandeza, etc., a Sabedoria, que é uma Dignidade, não daria semelhança de si mesma à Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e o Amor de Deus seria contra a Grandeza de Sua Bondade, Poder, etc., e tal contrariedade é impossível.

        E por essa impossibilidade, convém à Sabedoria dos Anjos — onde está a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., — ser uma Propriedade com a qual os Anjos conheçam o que conhecem, conhecendo com a Bondade, o Poder, etc., de tal modo que em Sua Sabedoria seja representada a Divina Sabedoria que forma Sua semelhança na Sabedoria dos Anjos segundo podem ser grandes a Grandeza e a Sabedoria dos Anjos em Bondade, Poder, etc.

        Logo, como isso é assim, está significado que os Anjos entendem que em sua Sabedoria existe a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e — como sua Sabedoria é proveniente da Potência de sua Bondade, Poder, etc. — (essa Sabedoria) foi confirmada no Ato como Propriedade, estando no hábito e no Ato. Os Anjos não ignoram essa confirmação, pelo contrário, entendem o que convém à Grandeza da Bondade, do Poder, etc., por hábito e Ato, conservando os objetos no hábito da Sabedoria, e na qual não existe tanta Grandeza de Poder, etc., que possa elevar todos os objetos ao mesmo tempo, porque se o fizesse, seria igual em Grandeza à Divina Sabedoria, sendo tal igualdade contra a Justiça e a Grandeza da Bondade, etc.

IV.5. Do Amor

        O Amor dos Anjos benignos é grande segundo a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., dos Anjos. Tal Grandeza é grande segundo o que o Amor de Deus dá forma à Sua semelhança na maneira que sua Grandeza desejou na Justiça e na Perfeição. Por isso, o Amor dos Anjos é Propriedade da Vontade, estando no Ato da Vontade. E se nos Anjos o Amor não fosse Propriedade, haveria na Vontade privação da natureza contra a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e tal privação seria contrária à Grandeza do Amor Divino, que à Sua semelhança parece Amor Angelical, segundo o que a Potência, que nos Anjos é Vontade, pode receber, e segundo o Amor Divino que a Vontade ama, com livre arbítrio. E porque o Amor dos Anjos foi uma Propriedade que aconteceu incontinenti que a Vontade amou a Deus com toda a Grandeza de sua Bondade, Poder, etc., no momento que os Anjos foram criados, por isso Eles amam incessantemente com Bondade, Grandeza, etc., da mesma forma que o sol, que ilumina o ar incessantemente.

IV.6. Da Justiça

        A Justiça é uma Propriedade que existe nos Anjos para que não haja falta de Grandeza na Bondade, no Poder, etc., e para que a Conveniência, que nos Anjos nasce da Inteligência e da Vontade, não exista sem Ato. E se a Justiça fosse uma Propriedade sem liberdade de Poder, de Sabedoria e de Amor, estaria em privação da Grandeza na Bondade, na Perfeição, no Poder, no Amor e na Sabedoria. Se fosse possível que a Justiça — estando grande na Bondade, no Poder, etc. — pudesse privar nos Anjos a liberdade do Poder, da Sabedoria e do Amor, seria coisa possível que a Justiça e seu contrário fossem uma mesma coisa na Bondade, na Grandeza, etc., e isso é impossível e uma contradição. Por que está significada a semelhança que a Divina Justiça imprime e informa na Justiça dos Anjos, justificando a Justiça Divina com livre vontade em sua Entidade e nas criaturas com Grandeza da Bondade, do Poder, etc.. E tal Grandeza é coisa impossível que a Livre Vontade Divina possa existir contra a Grandeza da Bondade, do Poder, etc.

IV.7. Da Perfeição

        A Perfeição está na Grandeza da Bondade, do Poder, etc., e e converso. E se a Perfeição não fosse uma Propriedade nos Anjos, a imperfeição poderia estar nos Anjos benignos com a Bondade, a Grandeza, etc., e isso é impossível, porque se fosse possível a Perfeição e a imperfeição seriam a mesma coisa, e tal unidade é impossível. E por essa impossibilidade está demonstrado que a Perfeição é Propriedade nos Anjos com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc., com a qual Perfeição os Anjos fazem na Grandeza da Bondade, do Poder, etc., como o fogo faz no ar o calor e o resplendor. Logo, naquele momento está significado que a Perfeição de Deus assemelha-se à Perfeição dos Anjos, porque a Perfeição Angélica está significada quando a Divina Perfeição faz o que faz, em Si mesma e nas criaturas, com Grandeza da Bondade, do Poder, etc.

        Provamos as sete Propriedades que existem nos Anjos benignos, as quais estão Neles como Potências a partir do momento que foram criadas, e são Atos todos os tempos que os Anjos fruem Deus. E essas Propriedades são firmadas quando Deus as fez nos Anjos, para que a semelhança de Suas Dignidades aí fosse manifestada.

IV. Das Condições dos Anjos

        Segundo o que são as Propriedades acima ditas nos Anjos, suas Condições seguintes também são Propriedades. Logo, como as Condições dos Anjos são muitas, nós trataremos algumas brevemente. Por isso, desejamos tratar somente quatro Condições, exemplificadas pela Imortalidade, Lugar, Tempo e Movimento. Primeiramente diremos da Imortalidade, com a Inteligência, a Vontade e a Conveniência, e desejamos tratar das Condições dos Anjos Benignos e de suas Propriedades acima ditas.

IV.1. Da Imortalidade

        Já dissemos como a Essência dos Anjos existe pela Inteligência, Vontade e Conveniência, que constituem um Ente que são os Anjos e é Substância abaixo das Potências, havendo Atos na Bondade, na Grandeza, etc. Tal Ente e Substância existem com a Matéria e a Forma intelectual. E porque nos Anjos a Matéria e a Forma constituem suposição com distinção, concordância sem contrariedade, a distinta concordância descende da Inteligência, da Vontade e da Conveniência.

        Por isso, os Anjos são imortais pela Essência e pela união da Matéria e da Forma, sendo a Matéria sem corrupção e a Forma princípios simples que convêm existir no Ente Angelical sem contrariedade, e a Matéria Angelical Intelectiva não possui apetite à outra Forma, nem existe falta de Matéria na Forma. Logo, é Condição dos Anjos a Imortalidade com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc. Por essa Condição, os Anjos são imortais e duráveis para que a Divina Imortalidade de Si mesma dê imagem e semelhança na Imortalidade dos Anjos.

IV.2. Do Lugar

        Assim como a Inteligência constitui em sua natureza o Ato de entender a Potência que é Entendimento, da mesma forma os Anjos, que são finitos e completos, constituem em sua natureza o Lugar que é finito e completo. Porque assim como a Inteligência é de natureza angelical, da mesma forma o Lugar é da natureza do que é terminado e finito. Por tudo isso que está colocado, o Lugar existe onde está a natural Inteligência dos Anjos com a qual os Anjos entendem. Por isso, cada Anjo e cada criatura está onde está seu Lugar. Mas assim como a natureza do homem melhor se convém com o homem em um Lugar que em outro, da mesma forma os Anjos melhor se convém com seu Lugar nos céus do que na terra.

        E porque o Lugar das coisas corporais não pode ser o Lugar dos Anjos, que não são corporais, os Anjos podem estar em seu Lugar no Lugar das coisas corporais, porque se não pudessem, seguir-se-ia que quando estivessem no Lugar onde estão as coisas corporais Eles deixariam seu Lugar e estariam colocados no corpo e privados de Seu Lugar. E porque isso é impossível, está dito o suficiente do Lugar Angelical, o qual não é impedido pelo Lugar corporal a significar que Deus está em todo Lugar e por todo o Lugar, porque é infinito e sem quantidade, pela qual quantidade tudo isso que existe convém que seja finito no Lugar, seja de natureza corporal ou intelectual.

IV.3. Dos Tempos

        Assim como o animal racional convém com a humanidade, da mesma forma o Ente convém com tudo o que foi principiado. E porque os Anjos são principiados, convêm com seu próprio Tempo, que é durável e imutável. Por isso convém aos Anjos possuir  os princípios da Bondade, da Grandeza, do Poder, etc.. E a Bondade, Grandeza e etc., que existem no Tempo dos Anjos, significam em si mesmas a Eternidade de Deus, que existe sem o Tempo. A Eternidade de Deus dá Sua semelhança no princípio dos Tempos com a privação do Tempo no meio e no fim do Tempo angelical, e este princípio convém com a privação da Grandeza.

        Logo, como isso é assim, a Eternidade de Deus dá forma mais fortemente, como modelo, ao Tempo dos Anjos, com Sua durabilidade e semelhança, mais do que em qualquer outra criatura. E nesta Semelhança estão condicionados os Anjos e o Tempo, e Eles entendem, amam e lembram a Deus em todo o seu Tempo, com a Grandeza da Bondade, do Poder, etc.

IV.4. Do Movimento

        Como são Propriedades dos Anjos a Grandeza da Bondade, do Poder, da Sabedoria, do Amor, da Justiça, da Perfeição, segundo o que foi dito acima — e porque a Virtude da Substância é maior para comunicar-se com as Potências onde é mais próprio à coisa receber a Virtude — por isso, o Movimento convém aos Anjos por que a Grandeza de sua Inteligência, Vontade e Conveniência é maior na Bondade, no Poder, etc.. Assim, os Anjos se movem até os lugares para usar de Sua Bondade, Grandeza, etc., e isto não aconteceria se Sua Virtude se movesse aos lugares sem Sua Substância. Porque assim como a substância do fogo se move até os lugares que aquece com sua virtude — o qual movimento realiza para que exista maior calor naqueles lugares — da mesma forma os Anjos se movem incessantemente para que exista maior uso da Bondade, da Grandeza, do Poder, etc.

        Assim, o Movimento convém aos Anjos, e este Movimento significa a Imobilidade de Deus, que é infinito e está essencialmente em todos os lugares em Virtude. Pois, se Deus fosse finito, mover-se-ia substancialmente para todos os lugares. Por sua vez, o Movimento dos Anjos não é impedido pelo Tempo nem pelo Lugar, porque cada Anjo está em seu próprio Tempo e em seu próprio Lugar, segundo o que foi dito acima.

        E com a natureza da Inteligência — que subitamente entende o objeto que apreende — o Entendimento entende aquele objeto, e com a natureza da Vontade — que subitamente deseja aquele objeto com o Ato de relembrar a Bondade, a Grandeza, etc. — os Anjos imediatamente se movem em um instante de um lugar para o outro tanto nos lugares distantes quanto nos lugares próximos. Da mesma forma isso acontece com a imaginação do homem, que imediatamente apreende os objetos que estão num lugar distante como faz com os objetos que estão próximos.

        Mas porque a Essência dos Anjos existe através da Inteligência, da Vontade e da Conveniência, Eles apreendem imediatamente os objetos que estão distantes pelo Tempo, como faz com aqueles que estão próximos, e isto significa a Grandeza da Sabedoria de Deus, para a qual nenhum objeto está distante. Logo, como isso é assim, os Anjos se movem pelos lugares sem Tempo onde a demora é impossível, e se movem sem impedimento de lugar, e por isso os Anjos não se movem entre o princípio e o fim dos Tempos nem de lugar, e assim se movem pelos lugares corporais, como o raio do sol atravessa o vidro que é um corpo.

        Assim, dissemos das Condições dos Anjos, as quais existem segundo a Natureza de Sua Essência e segundo Suas Propriedades, que são formadas pelas Divinas Dignidades.