1. Algures numa daquelas ruazinhas que ficam por trás do Largo do Rato, mas que ainda não são consideradas como fazendo parte de S. Bento ou da Lapa, existia um edifício do início do século em mau estado de conservação, com quatro andares, com um pé direito típico dos edifícios da altura. Esse edifício passaria completamente despercebido na zona. Uma pequena placa de bronze, muito gasta pelo tempo e parcialmente corroída com verdete, anunciava que o primeiro andar alojava a Subdivisão de Crimes Extraordinários da Polícia Judiciária. Talvez o transeunte mais curioso encontrasse um pretexto qualquer para entrar então no edifício, que dava para uma escadaria velha e gasta - mas imaculadamente limpa. O primeiro andar podia albergar qualquer consultório médico de terceira categoria, um notário ou uma firma de advogados em declínio; uma campaínha de baquelite negro datando dos anos trinta, ao lado de uma sólida porta de madeira, tinha apenas uma chapa metálica com a inscrição «PJ/SCE». Quem ousasse tocar a essa campaínha era imediatamente recompensado com o ruído estridente do trinco eléctrico que abria a porta. Entraria para uma pequena recepção que parecia parada no tempo. O chão era de pedra sem características excepcionais; as paredes, gastas mas também limpas, eram forradas a madeira a partir de meia altura. Tudo dava indicações de ter sido restaurado décadas atrás, numa altura em que a palavra «restauro» era mais sinónima de «manutenção» e pouco mais. Não havia degradação, ou estuque a caír das paredes, ou inflitração de água - apenas uma sensação de gasto. Por exemplo, a iluminação era fornecida por uma lâmpada fluorescente sem adornos especiais; provavelmente teria sido colocada nos meados do século e substituída por lâmpadas de dimensão igual ao longo dos tempos. A pessoa responsável pela abertura do trinco executava em simultâneo as tarefas de recepcionista, telefonista, secretária/dactilógrafa e de office boy - embora fosse uma senhora de idade indeterminada, mas provavelmente cinquentona, e que dava pelo nome de D. Isabel. Era também ela responsável pela limpeza das instalações. Embora a simpatia não fosse o seu forte, D. Isabel primava pela eficiência, característica bem rara na função pública. Tudo na sua secretária de metal típica da burocracia estatal estava meticulosamente arranjado - a velha consola do PBX, a máquina de escrever electrónica, os papéis e as canetas. Na verdade, este excesso de eficiência e de organização era totalmente desperdiçado - pois a Subdivisão de Crimes Extraordinários não tinha quase nada para fazer. D. Isabel era, pois, como as Forças Armadas portuguesas - pronta para a intervenção, mas consciente de que jamais a sua intervenção seria necessária. De manhã, ao chegar, sempre pontualmente às 8 horas, D. Isabel começava por fazer a distribuição dos jornais. Levava cerca de uma hora para adquirir os matutinos diários, lê-los na diagonal, assinalar os artigos de interesse, e fazê-los chegar às mãos dos restantes funcionários da subdivisão. Era uma rotina que fazia há trinta anos, desde que entrara ao serviço da Polícia Judiciária. A verdade é que não existiam também muitos funcionários na subdivisão. A recepção dava para um corredor em U com seis portas em madeira, todas elas com um vidro opaco, sobre o qual eram inscritos os nomes dos seus ocupantes a tinta dourada. Em tempos idos, a pintura destes nomes era contratada a um profissional, mas nos últimos anos era a própria D. Isabel a realizar essa tarefa, por uma questão de minimizar os custos. De qualquer das formas, só existiam mais quatro pessoas na subdivisão, que se conheciam muito bem; os nomes que estavam pintados nas portas eram um pro forma originário de outros departamentos e divisões da Policia Judiciária, e que se mantinha aqui apenas por tradição, não por necessidade. A primeira porta dava para um pequeno gabinete que era ocupado pelo agente Manuel Gaspar Alves. Alves era também ele um cinquentão e fora polícia de giro antes de ser transferido para aquela subdivisão. Homem de poucas palavras, era o «operacional» da subdivisão, se bem que esse nome pomposo não reflectisse em nada o seu trabalho - que, na verdade, era quase nulo. Tinha vinte quilos a mais e provavelmente seria incapaz de correr atrás de um suspeito, se alguma vez lhe pedissem que fizesse isso. De qualquer das formas, fora para ali transferido na sequência de um tiroteio enquanto ao serviço da PSP, quando, ainda muito novo, tinha levado um tiro numa perna e outro na anca. Sobrevivera quase que por milagre, mas ficara praticamente incapacitado de continuar a desempenhar a sua profissão. No entanto, a Polícia defende os seus, e Alves encontrara ali na Subdivisão de Crimes Extraordinários um trabalho sedentário que podia continuar a desempenhar. Ou que não desempenhava, visto que o trabalho era muito pouco. Mesmo assim, acompanhava os detectives nas suas (escassas) investigações, sempre que preciso - nunca mais do que uma ou duas vezes por ano. Os restantes dias passava-os a ler jornais e a ouvir música e relatos de futebol no velho rádio que fora deixado pelo seu antecessor no seu gabinete. Mas era uma pessoa fiável, muito calma, e bastante calado. Integrava-se perfeitamente numa unidade cuja existência era praticamente nula e que sobrevivera ao longo dos anos porque o seu orçamento era de tal forma reduzido que passava completamente despercebido no rol de departamentos e divisões da PJ. A porta em frente dava para uma espécie de arrecadação, que também conservava a velha fotocopiadora dos anos setenta, por milagre ainda a funcionar - ou talvez apenas funcional devido ao seu pouco uso. Afinal de contas, nem sempe havia dinheiro para tirar fotocópias, e o uso da máquina era bastante controlado. D. Isabel protestara energicamente pela introdução da fotocopiadora - era a favor da manutenção do sistema antigo, artesanal, à base de gelatina e amoníaco, que servia perfeitamente para a reprodução dos poucos documentos que produzia na sua máquina de escrever. Mas tanto a máquina de escrever, a fotocopiadora e o PBX tinham sido oferecidas pelos órgãos centrais da PJ aquando da introdução de equipamento mais recente nas divisões mais ricas. Eram os três dos equipamentos mais modernos que existiam na Subdivisão de Crimes Extraordinários, com a excepção de um que se encontrava no gabinete de um dos detectives. Dando a primeira curva do U, ficava o maior e melhor gabinete, com vista para o trânsito lisboeta, que naquela rua era relativamente escasso. Aqui ficava o espaço pessoal do chefe da subdivisão, o inspector-chefe Eugênio de Castro, licenciado em direito pela Universidade Católica. Já perto dos sessenta anos, era um homem magro e aquilino, de feições duras, embora na realidade fosse de coração mole. Constava que tinha tido um cargo importante no Quartel-General da Polícia Judiciária, embora fosse muito novo nessa altura. Uma complicação qualquer no seu passado forçara a sua transferência para aquela unidade esquecida de todos. Mesmo assim, era, tal como a D. Isabel, bastante eficiente no que fazia. Os seus relatórios de progresso - embora curtos - eram os primeiros a dar entrada nos arquivos da PJ. Detia também o recorde de fecho de casos - embora tal não fosse para admirar, pelas razões que veremos de seguida. É que a PJ apenas recorria à Subdivisão de Crimes Extraordinários quando tinha entre mãos um caso qualquer que fosse aparentemente inexplicável ou insolúvel. Antes de ser definitivamente arquivado, era passado para as mãos de Eugênio de Castro. Este pacientemente delegava nos seus detectives e no agente Manuel Alves uma exaustiva investigação fora dos moldes e procedimentos normais da PJ. Recorriam-se a meios completamente estranhos - como, por exemplo, o recurso aos arquivos da Torre do Tombo, a consulta em especialistas sobre esoterismo ou até mesmo a mediums na busca de novas informações que pudessem conduzir a uma conclusão de uma investigação cujos factos abordassem o irracional, o inexplicável ou mesmo o oculto. Não era para admirar, pois, que, por um lado, a PJ não desse importância alguma aos casos que chegavam à SCE, como por outro lado ninguém lesse as conclusões altamente improváveis a que Eugênio de Castro chegava. Os casos muitas vezes eram fechados com explicações bizarras - ou mesmo sem sequer uma explicação coerente para os factos. Haviam alturas em que os mais tresloucados casos passavam pelas mãos da SCE; mas nos tempos mais recentes, era vulgar a PJ ignorar completamente a existência da SCE, deitando a papelada dos casos mais extraordinários directamente para o lixo. Existia algum equilíbrio neste processo: afinal de contas, o custo de fazer passar uma investigação para as mãos de Eugênio de Castro era quase nulo. Mais valia darem-lhes algo que fazer do que deixá-los a passar o tempo a ler jornais. Pois era essa a tarefa mais importante da Subdivisão: a leitura de artigos de jornais detalhando possíveis casos o mais bizarros possível. A Subdivisão era suficientemente autónoma para ter liberdade de escolha nos casos que investigava, sob sua própria iniciativa ou a pedido dos órgãos centrais. Muitas vezes investigavam-se casos sem nexo apenas pelo prazer de fazer algo de mais produtivo do que ler jornais. Era aqui preciso o bom senso de Eugênio de Castro para saber distinguir o que valia a pena investigar - argumentando que o caso tinha pelo menos algo que justificasse a sua investigação - e o que nem valia a pena o esforço da leitura do respectivo artigo no jornal. Mesmo assim, a quantidade de casos absurdos que passava por Eugênio de Castro era impressionante: muitas vezes chegavam-se aos vinte casos por ano, quase todos eles sem qualquer relevância para a Justiça portuguesa. O último caso que tivera alguma relevância e chegara mesmo aos tribunais envolvera um mau-olhado lançado por uma «bruxa»... há quase quinze anos atrás! Eugênio de Castro tinha uma dose de bom senso suficiente para saber quando é que haviam factos suficientes para incomodar um juíz com uma dose de bizarria suficiente para internar um louco... O braço direito de Eugênio de Castro era o detective Diogo Duarte Nunes. Era um pouco mais novo que o chefe da subdivisão e era quase o antagonismo perfeito do mesmo. Era gordo, calvo e bonacheirão; um conversador natural. Homem de muita cultura, era licenciado em sociologia, mas tinha uma atracção anormal pelo oculto e pelo inexplicável que cedo causara a sua transferência para a Subdivisão de Crimes Extraordinários, pois acabava por dificultar a acção dos outros departamentos com as suas explicações arrevezadas. Tentara inclusivé acusar um suspeito de assassínio apenas baseando-se na sua carta astrológica. Mas aqui na SCE, brilhava - os seus conhecimentos profundos de tudo o que era estranho eram preciosos para a investigação dos casos inexplicáveis que passavam pelas mãos de Eugênio de Castro - mesmo que na maior parte dos casos fosse o próprio Eugênio de Castro a reescrever o processo de forma a lhe dar um pouco da consistência necessária a um processo judicial - por mais extraordinário que fosse. De qualquer das formas, o chefe da subdivisão sabia bem que Duarte Nunes era incansável na sua tarefa de procura de explicações loucas - mas plausíveis na sua bizarria - que exaustivamente prosseguia, mergulhado na pequena biblioteca que possuía no seu gabinete. Aliás, a sua biblioteca expandira ao ponto de ocupar a sala defronte, que de momento estava atafulhada de estantes metálicas baratas cheias de pastas cheias de papelada extraordinária. O gabinete de Duarte Nunes era o caos completo, com uma bancada de trabalho com várias camadas de livros abertos sobrepostos em cima de diagramas e anotações. Tinha uma colecção de bloco-notas empilhados precariamente em cima da secretária de madeira, que competiam pelo espaço no tampo da mesa com acessórios quase inúteis como o telefone e a velha máquina de escrever Olympia. A um canto da mesa estava talvez o equipamento mais moderno que jamais passara pelas portas da SCE: um computador portátil de último modelo, oferecido por uma sobrinha predilecta de Duarte Nunes, e que este nunca tinha conseguido colocar efectivamente ao serviço da Justiça. Mesmo assim, era infinitamente mais rápido para desenhar cartas astrológicas ou para mostrar cartas de Tarot no seu écran, apresentadas por um software qualquer obtido algures na Internet. Uma das várias prateleiras continha cópias de volumes de ficção que ninguém conseguiria levar a sério num gabinete pertencente a um digno membro de uma força policial: livros como o «Livro Azul» que documentava grande parte das aparições de OVNIs nos Estados Unidos desde o incidente de Roswell no Novo México, cassetes de alguns episódios dos X-Files (que Duarte Nunes parecia acreditar que eram baseados em dossiers perdidos pelo FBI e recuperados por um produtor qualquer de Hollywood na expectativa de lucro fácil com a sua divulgação através de uma série apresentada como ficção), as obras completas de Edgar Allan Poe e de H. P. Lovecraft, traduções beras de livros medievais ocultos, ensaios e teses sobre os Templários, uma boa meia dúzia de livros sobre esoterismo, escritos por autores de credibilidade duvidosa, enfim, uma série de obras relacionadas com todo o tipo de assuntos estranhos, bizarros, ocultos e extraordinários. Talvez o livro mais «normal» fosse uma bíblia hebraica do século dezoito, cujas páginas encerravam uma série de notas sobre explicações proibidas pela Igreja Católica. O resto do gabinete encerrava livros sobre assuntos mais comuns, como física, história, arte e geografia. Havia uma estante quase dedicada apenas a arqueologia. Uma outra tinha livros antigos sobre sociologia, psicologia e até parapsicologia. Alguns tomos sobre medicina, incluindo medicina naturalista e oriental, completavam o quadro. Junto à janela estava uma ardósia repleta de símblos cabalísticos; Eugênio de Castro costumava dizer que se Duarte Nunes vivesse no século dezasseis, seria queimado num auto-da-fé por bruxaria... Para completar o ambiente místico do gabinete, a atmosfera estava geralmente repleta de fumos exalados por um cachimbo quase permanentemente aceso, característica que Duarte Nunes gostava de partilhar com Sherlock Holmes - a névoa permanente que enchia o gabinete parecia tornar tudo ainda mais irreal, mas Duarte Nunes estava convicto que os odores do cachimbo lhe aguçavam o espírito durante o trabalho mais intenso. Escusado será dizer que era um argumento pouco convincente, especialmente para D. Isabel, que odiava profundamente o vício do tabaco, e que encontrava todos os pretextos para arejar a sala do sociólogo-bruxo sempre que este se ausentava por um minuto que fosse. Numa tarde sombria no final do Verão, Eugênio de Castro abriu a porta do gabinete do detective, torcendo o nariz perante o miasma que emanava do cachimbo de Duarte Nunes. Este aparentemente deliciava-se em experimentar as marcas de tabaco com odores o mais irrespiráveis possíveis. Deixou uma pasta com capa amarelecida em cima dum espaço da mesa que por lapso o sociólogo se esquecera de ocupar com os seus incontáveis bloco-notas e diagramas. O facto da capa do dossier ostentar as palavras «Ministério da Defesa Nacional» despertou a curiosidade do detective, que arqueou uma sobrancelha e deixou um sorriso maroto trespassar os lábios carnudos. - Ena, o Exército tem algo para nós? - interrogou-se. - Dá uma olhadela nisto e passa-a ao Benjamim, - disse simplesmente o chefe e saíu, grato por se libertar daquele antro sinistro que passava por gabinete. O «Benjamim» era o ocupante da última sala da Subdivisão. Era igualmente o mais jovem membro da unidade. Dava pelo nome de Paulo Vasconcelos e vinha de boas famílias. Estudara medicina durante uns anos, mas nunca concluira o curso; pensava em especializar-se em Medicina Legal e exercer a profissão de médico legista. Concluira a parte escolar com uma média péssima e fora aconselhado a desistir; tirara dois anos de Direito, mas a falta de interesse no assunto não lhe permitira continuar os estudos com o ardor necessário para decorar os enormes volumes de Direito a que os estudantes estavam sujeitos. O pai arranjara-lhe uma cunha para um trabalho honesto no Ministério da Justiça; existiam alguns familiares que ocupavam lugares de respeito dentro do Ministério, alguns juízes e até um adjunto do Procurador-Geral. Mas a falta de entusiasmo do jovem Paulo acabara por o condenar a uma transferência para a unidade mais inútil da Polícia Judiciária. O pai desesperara ao ver o seu filho mais novo relegado para um cargo de funcionário público sem importância; a filha mais velha era assessora da administração do Banco de Portugal, um outro filho desempenhava um papel importante na direcção de uma das firmas do grupo da família, um terceiro estava bem lançado num escritório de advocacia de luxo, tratando de off-shores na Madeira, e apenas o último filho fora uma desilusão completa, apesar do seu ingresso na Faculdade de Medicina parecer inicialmente extremamente promissor. A mãe, contudo, mais prática, achava que qualquer profissão honesta fosse melhor do que a condenação a uma vida de estudante frustrado. E a verdade é que Paulo conseguira terminar com louvor e distinção um curso de formação interna na PJ que lhe dava a equivalência necessária para a posição de detective. Fora assim destacado para os serviços centrais da PJ. A estadia fora breve - o jovem recém-promovido detective mostrava uma aptidão para encontrar teorias pouco plausíveis para a solução de casos pendentes, e preferia o trabalho em frente aos livros do que o trabalho de rua - estranha vocação para quem passara uma vida de estudante com horror aos livros de estudo! Mas alguém se recordara da existência da Subdivisão de Crimes Extraordinários, que lhe assentava como uma luva, e graças a um pedido especial da família Vasconcelos, que fora muito insistente para que o jovem Paulo exercesse a profissão de detective - «um cargo digno, com responsabilidades, e com algum staus quo», segundo as palavras da mãe - fora então transferido para a SCE. Paulo rapidamente se adaptou à nova posição, com bastante entusiasmo. Dada a sua formação em Medicina, passaram-lhe os casos bizarros todos que tinham a ver com corpos estranhamente mutilados ou os assassínios com substâncias estranhas que os Homicídios nunca conseguiram resolver. O jovem detective parecia assim re-encontrar a sua vocação e sentia-se bem naquela unidade pouco exigente, onde podia dar largas à imaginação na sua demanda por explicações pouco plausíveis para os casos inexplicáveis. Eugênio de Castro, contudo, já habituado às teorias de Duarte Nunes, limitava grandemente a imaginação de Paulo Vasconcelos, insistindo em relatórios mais objectivos. Mas Paulo não precisava de grandes incentivos para se dedicar de corpo e alma ao seu trabalho. Formara rapidamente uma amizade com o sociólogo Duarte Nunes, ficando várias vezes maravilhado com a sua vasta biblioteca do bizarro e do obscuro; tornou-se no seu mais fiel pupilo, facto que dava muita satisfação pessoal a Duarte Nunes, embora não fosse tão bem recebido pelo chefe, que tentava - em vão, bem o sabia - que a sua unidade produzisse relatórios mais plausíveis para obter maior credibilidade junto dos serviços centrais da PJ. Foi assim que, no dia seguinte, Duarte Nunes entrou no pequeno gabinete do «Benjamim» da Subdivisão, o seu sorriso maroto brincando ao canto do lábio quando se sentou em frente da mesa onde Paulo tomava esporadicamente notas sobre um caso em andamento e que seguia na imprensa e nos relatórios da «Judite». Ergueu o olhar para o detective mais velho. Este simplesmente depositou o dossier militar em cima da mesa. - Quero que leias isto, que tires umas notas e que discutas o assunto comigo durante o almoço. À uma hora, no «Trapos». O «Trapos» era um pequeno e barulhento restaurante uma rua abaixo, que apesar de servir apenas pratos do dia, tinha um ambiente um pouco retro e era frequentado por um conjunto particular de pessoas que trabalhavam na zona - alguns intelectuais, aqui e ali uns antiquários das lojas da zona, uns estudantes da Escola de Artes Plásticas que abrira no Rato, e este ou aquele deputado de S. Bento mais associado à classe intelectual do que a classe política. Eugênio de Castro recusava-se a entrar no «Trapos»; dizia que estava farto de pseudo-intelectuais a discutirem a influência de Kant na Constituição Portuguesa. Duarte Nunes, admitindo uma certa nostalgia pelos tempos de estudante em que se passavam os dias com conversas perfeitamente inúteis e fúteis do género, numa altura em que acreditava que ele e os amigos estavam na realidade a discutir temas de grande importância para o património cultural da humanidade, era bom frequentador do «Trapos», ao ponto de ter uma pequena mesa «cativa» que lhe estava eternamente reservada num canto da sala, de onde se podia observar toda a fauna que passava pelo «Trapos». Paulo Vasconcelos fora pontual e já esperava na mesa do costume o idoso detective-filósofo há mais de vinte minutos. Este, sempre sorridente, sentou-se murmurando umas desculpas. - É que estava a acabar de ler um excerto interessante de um livro de Johannes Fleischmann - não conheces? Um judeu alemão do século dezoito, tem meia dúzia de coisas interessantes, estava a ler o Die Wasserwesen, uma recolha de relatos históricos alegadamente verídicos sobre uma enorme conspiração de uma raça de humanóides que vive há milênios nas zonas mais profundas dos oceanos, e que a pouco e pouco têm influenciado a raça humana a tornar-se mais civilizada... Este género de conversas de Duarte Nunes sempre arrancava um sorriso ao tímido Paulo, que achava extraodinário como é que uma pessoa com idade para ser seu pai, e evidentemente com uma certa dose de cultura - se bem que muito parcial! - acreditava com tanta veemência naquilo que encontrava. De certa forma, Duarte Nunes encorajava o próprio Paulo, que tinha a tendência para dar largas à imaginação para explicar certos factos mais incriveis. Acendeu o seu odorífero cachimbo, facto que levou Paulo a puxar de um cigarro, vício que «apanhara» por contacto com o sociólogo e que provavelmente escandalizaria quase toda a sua família, à excepção da irmã mais velha, que era um caso sui generis. Teresa era cinco anos mais velha que Paulo e tinha uma figura impressionante (que decerto não saía à mãe, matrona de expressão rude e com excesso de peso desde criança), apesar de não praticar nenhuma forma de exercício, alimentando-se com tudo que tivesse excesso de colestrol, fumasse dois maços por dia, bebesse ao ponto de ser quase alcoólica, tivesse experimentado quase todos os tipos de drogas, e partilhado o leito com metade de Lisboa, para além de ter sido presa duas vezes em rusgas de discotecas por comportamento escandaloso que acabara em sessões de strip-tease - o que nunca a impedira de ter sido a primeira do curso, tivesse uma ascensão quase mágica dentro do Banco de Portugal sem qualquer intervenção da família, tivesse sido eleita a «Mulher do Ano» por uma revista do jet-set e publicasse dois best-sellers no espaço de dois anos, um dos quais um livro técnico sobre operações financeiras de capital de risco e o outro um romance pornográfico... mas aos que têm sucesso, uma carreira invejável e uma fama notável, todas as excentricidades eram permitidas. - ... mas de qualquer forma, - continuava Duarte Nunes, com Paulo a perder já o fio à meada, - não existe nenhuma prova científica que comprove a existência de taquiões que viajem a velocidades superiores à da luz, em clara violação de todas as leis conhecidas no Universo. O que nunca impediu que a sua formulação matemática pusesse em questão o modelo relativista. Paulo folheou o dossier militar e procurou desesperadamente que Duarte Nunes se concentrasse no assunto em questão. - Como é que uma coisa destas chegou às mãos do chefe? - Ah! - exclamou Duarte Nunes, exalando uma baforada nauseabunda de fumo levemente esverdeado. - O nosso «Livro Azul»! Aquilo cuja existência nunca consegui determinar através dos meus amigos nos Altos Estudos do Exército. Eles bem que dizem que tudo isto não passa de blá-blá-blá dos americanos, que inventam tudo e mais alguma coisa para vender livros e séries televisivas! Mas eu cá com os meus botões nunca fiquei muito convencido; se de facto existe vida extraterrestre - e eu estou convencido que sim - porque raio é que os extraterrestres só visitam os americanos, como os filmes nos pretendem fazer acreditar? Quanto a mim, sempre achei que se existem divisões no aparelho militar americano que se dedicam ao estudo de OVNIs e de sinais de vida inteligente - como a iniciativa SETI - também na velha Europa os militares devem ter estruturas idênticas. Nem que seja porque fazemos parte da NATO, que é modelada segundo o espírito americano, e temos estruturas idênticas em muitos aspectos. Até o SIS - os nossos «serviços secretos», se bem que sejam terrivelmente amadorescos - têm um grupo de elementos que são treinados pela CIA e pelo MI5 e que reportam as suas conclusões a estas organizações antes de as fazerem chegar ao governo português... não sabias? - Paulo abanou a cabeça, evidentemente. - Mas é verdade. Pois eu creio que as iniciativas como o «Livro Azul», o SETI, as Majestics e semelhantes organizações têm de ter parceiros europeus. Não fazia sentido se assim não fosse. Aliás, os militares portugueses têm uma estrutura completamente à parte da vida civil, coisa que nós normalmente nos esquecemos. Tu também cumpriste o serviço militar obrigatório, não foi? Pois, agora chamam-lhe Serviço Efectivo Normal, mas é a mesma coisa que nos meus tempos. E de facto os militares têm tudo em duplicado: telefones, correios, transportes, e, claro, detecção por radar. De Montejunto controla-se todo o tráfego aéreo militar e civil - a ANA por vezes pede ajuda à Força Aérea quando têm problemas em controlar excesso de tráfego civil. É por isso que este documento é interessante - mostra quais os canais de comunicação entre entidades civis e militares no caso de observação de fenómenos inexplicáveis, em particular, objectos voadores não-identificados. - Sem dúvidas que é interessante, - disse o jovem detective. - Nem suspeitava que existissem normas para estes casos. Mas, Dr. Nunes - o que é que isto tem a ver connosco? Nós só investigamos casos que nos aparecem - sim, eu percebi que a PJ também tem de comunicar os casos que investiga que possam conter provas de vida extraterrestre a este Centro Nacional de Observações Extraplanetárias ou lá como se chama - mas não nos passam casos desses pelas mãos... - Ah, mas o inverso também é verdade - o CNOE também pode requisitar detectives da Judite como consultores ou observadores para assistir ou auxiliar nos casos que achem necessário. Está algures por aqui... - Pegou no dossier, folheando os documentos na pasta até encontrar a referência, que mostrou a Paulo. - É isto: «Poderá o CNOE solicitar, sempre que necessário, a colaboração de membros das entidades civis e militares referidas ao abrigo deste protocolo, tanto em acções extraordinárias, como também como observadores no Conselho Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários». Este é um órgão que reúne esporadicamente os especialistas da matéria. Pois é, meu caro Paulo, e a Judite faz parte desse órgão, e fomos formalmente convidados para estarmos presentes numa sessão extraordinária do dito Conselho. Escusado será dizer que a Judite não percebe nada do assunto e fez chegar a convocatória ao nosso querido e amado chefe... Paulo abanou a cabeça. - Não compreendo; que tipo de contribuição podemos nós dar? Não temos assim muitos casos de OVNIs que alguma vez tenhamos investigado... aliás, não são do foro judicial... quer dizer, o que nós apanhamos por aqui são mais os casos de bruxas que lançam mau-olhado, os assassínios inexplicáveis, coisas assim... - Digamos que um extraterrestre cometia um assassínio. A PJ seria chamada a investigar o caso. Não era assim? Os olhos de Paulo arregalaram-se. - Vamos investigar um assassínio cometido por um extraterrestre?? Mas... - Era apenas um exemplo. Quero dizer que a PJ tem juridisção sobre actos criminosos cometidos em território nacional, independente de quem os cometer, seja o suspeito português, europeu, terrestre... ou extraterrestre. Não é assim? - Bem... tecnicamente, sim, claro... - Por isso é que fazemos parte do dito Conselho Nacional. Para investigar casos paranormais em que exista claramente violação da legislação em vigor. Correcto? Paulo assentou que sim. - Bem. Vamos ao que interessa. - Abriu a pasta que trazia consigo e tirou uma folha de papel térmico. - Esta é a convocatória que nos foi reenviada por fax dos serviços centrais. Alegadamente um aparelho voador não-identificado violou o espaço aéreo nacional. A aviação civil foi alertada para o objecto pelas entidades espanholas, que detectaram o aparelho a sobrevoar o Atlântico, vindo de noroeste da Península. Os espanhóis têm melhor equipamento que o nosso... enfim. O que interessa é que o espaço aéreo a noroeste faz parte da zona do oceano que pertence a Portugal, logo, o problema é nosso. Os radares civis verificaram que a rota do aparelho iria cruzar o espaço aéreo nacional e procuraram identificá-lo. O piloto recusou-se a prestar qualquer tipo de identificação. Entrou no espaço aéreo pelo Minho. Fizeram-se repetidas tentativas para que o intruso se identificasse; nisto, a ANA recebeu um contacto dos militares, a pedir esclarecimentos sobre o vôo não-autorizado sobre o dito aparelho. A ANA informou a Força Aérea de que o piloto não tinha respondido aos apelos de identificação; sugeriu que os militares intervissem. Paulo quase que se esqueceu de que a comida arrefecia na mesa. O ruído ambiente do «Trapos» parecia diminuir de intensidade à medida que Duarte Nunes, visivelmente excitado com o relato, prosseguia na descrição do acontecimento: - Bom, estes casos são tratados segundo normas internacionais. Primeiro, os civis fazem tudo para identificar o aparelho intruso. Depois os militares fazem o mesmo, tentando estabelecer contacto também pelas frequências militares. Se não conseguirem, interceptam o objecto, acompanhando-o na sua descida no aeroporto mais próximo, seja este civil ou militar. Do Porto lançaram uma esquadrilha de três helicópteros a jacto para interceptar o intruso. Informaram-no de que devia imediatamente mudar de rumo e pousar em Pedras Rubras. Mas o intruso deslocava-se a velocidades supersónicas, apesar de abrandar a sua marcha progressivamente à medida que se deslocava do Norte para o Sul. Continuava a ignorar os apelos para aterrar. Bom, os portugueses são bastante pacíficos nestas coisas, e levam imenso tempo a decidir. Só quando o aparelho - agora a deslocar-se a velocidades subsónicas - passa o Tejo é que se decide abater o intruso. Acho que deve ter sido um dos raríssimos casos em que se fez uma intervenção deste tipo - e segundo o relatório, após consultas com os vários órgãos da NATO. Uma esquadrilha de quatro F-16 levantou vôo da Base Aérea de Sintra com a missão de intercepção. Primeiro, ajustaram a sua rota e velocidade de forma a acopanharem o intruso. Isto tem um procedimento interessante, em que procuram «forçar» o intruso a descer - imagina, por exemplo, que tem o rádio e os equipamentos avariados e que se «perdeu», sendo incapaz de estabelecer a sua posição. Os pilotos em todo o mundo sabem que nestas situações são geralmente escoltados pelos militares até que aterrem em segurança, sem recorrer aos equipamentos. Mas este piloto aparentemente não conhecia os procedimentos e ignorou a presença dos aviões militares. Ora aqui surge o primeiro pormenor curioso: o aparelho não foi identificado por nenhum dos militares. Era um modelo completamente desconhecido. Lembrava vagamente os stealth fighters de última geração, que parecem umas enormes asas triangulares, mas não tinha quaisquer marcas exteriores. O mais curioso era não ter um brilho metálico, embora aparecesse nos radares. Duarte Nunes abandonou o cachimbo e pareceu aperceber-se pela primeira vez que a comida já estava fria. Mesmo assim, espetou o garfo no bife. - Ora enquanto isto decorria, os militares entravam em contacto com os sistemas da NATO e, com os dados fornecidos pelos espanhóis, procuraram traçar a rota do aparelho até à sua origem. E eis que surge o segundo pormenor estranho: o aparelho aparentemente «apareceu» assim sem mais nem menos a cerca de mil quilómetros da costa portuguesa; e não há registo nenhum da sua rota para além desse ponto! Com isto, os americanos suspeitaram fortemente das intenções do intruso, e sugeriram que fosse abatido, pensando estarem na presença de um avião novo de origem completamente desconhecida. Ora como os russos já não são nossos inimigos, não restam muitos países capazes de desenvolverem uma tecnologia nova, e os americanos mostraram-se subitamente muito interessados nesse aparelho. Paulo mastigou o resto do seu bife, mas a verdade era que não estava com muito apetite. A história incrível que Duarte Nunes contava parecia-lhe infinitamente mais interessante do que o bitoque à «Trapos». E assim o sociólogo prosseguiu: - Bem, do lado português, haviam muitas dúvidas. Se os americanos queriam o aparelho, abatê-lo não era uma ideia lá muito interessante. Por isso acompanharam o aparelho durante mais umas centenas de quilómetros, procurando a todo o custo fazê-lo descer. Dispararam umas rajadas de metralhadora a curta distância para mostrarem as suas intenções. Continuaram a ser ignorados. Nisto a NATO, verificando a trajectória do aparelho, chegou à conclusão que este iria atravessar o Mediterrâneo, e se continuasse a diminuir a velocidade, iria aterrar algures em Marrocos, o que não dava jeito nenhum - seria infinitamente mais difícil recuperar um avião em território marroquino do que em Portugal, membro da NATO. Deram indicações para os portugueses abaterem o avião o mais depressa possível; e lançaram caças de um dos porta-aviões da NATO que patrulham o Mediterrâneo para abaterem o aparelho caso este saísse do espaço aéreo português. Aparentemente, era preferível apanhar o avião no mar do que em Marrocos... Verificando que o avião estava a sobrevoar uma zona desabitada no Alentejo - felizmente - o Estado Maior da Força Aérea deu ordens para abater o avião. Estranhamente, os mísseis disparados falharam o alvo; foi preciso abatê-lo a tiros de metralhadora. O aparelho caíu sem que o piloto se ejectasse, e fez-se deslocar um grupo de helicópteros com uma companhia da Brigada Aerotransportada para isolar a zona e capturar o piloto caso este tivesse sobrevivido à queda. Ora por uma estranha coincidência o aparelho não só não se incendiou como também não pareceu sofrer grandes estragos com a queda; os maiores danos que apresentava tinham sido causados pelas rajadas de metralhadora, que tinham perfurado o casco, feito de uma estranha substância muito dura, uma cerâmica qualquer mais resistente que o aço. Nisto Duarte Nunes pausou e terminou o seu prato. Cheio de expectativa, Paulo perguntou: - Então e depois? Conseguiu-se capturar o piloto? Ou identificar o avião? - O relatório termina aqui, - disse Duarte Nunes, com um sorriso malicioso. - As autoridades civis foram informadas de que o intruso fora abatido, mas que todo o processo tinha sido classificado como «muito secreto». A NATO iria tomar conta do ocorrido daí em diante. O aparelho foi transportado de helicóptero para um hangar na base de Beja. Convocou-se uma reunião extraordinária do Conselho Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários, a reunir em Beja. E não se sabe de mais nada. - Pensava que a base de Beja tinha sido desactivada, - disse Paulo. - Isso, meu caro Paulo, é o que a Força Aérea quer que pensemos. Na verdade, a base de Beja é demasiado importante para ser desactivada. É que na realidade esta não foi a primeira vez que se capturou um aparelho destes, mas a quinta. - Quê? - fez Paulo. - Porque é que julgas que a base de Beja esteve nas mãos da NATO, e mais concretamente, da Alemanha durante estes anos todos? Paulo, Beja é a «Área 51» da Península Ibérica: os seus hangares encerram todos os OVNIs capturados na Península Ibérica. A única diferença é que os outros quatro casos ocorreram em espaço aéreo espanhol, durante a altura em que os alemães estavam em Beja, e a Força Aérea Portuguesa nunca precisou de interferir directamente. Foi sempre tudo tratado a nível da NATO, a Força Aérea só dava as autorizações para os helicópteros que transportavam os OVNIs para lá pudessem cruzar o espaço aéreo nacional. Foi a primeira vez em que Portugal interviu directamente nas operações. E pelos vistos com um sucesso tremendo: nos outros quatro casos, os aparelhos tinham sido parcialmente destruídos. Neste caso... Paulo, neste caso, o piloto sobreviveu à queda! Subitamente Paulo sentiu um suor frio percorrer-lhe o corpo. Pestanejou. O ambiente no «Trapos» pareceu-lhe irreal. - Capturou-se um... um extraterrestre? Vivo?! Mas... mas isso é absolutamente, completamente... inacreditável! A prova irrefutável de vida extraterrestre! Em Portugal? Dr. Nunes, isso... isso... - Acalma-te, rapaz, não é a primeira vez que isto acontece; há muitos mais casos documentados... mas enfim, este é o primeiro a acontecer aqui em Portugal. - Muitos casos documentados...? Mas sempre pensei, enfim, quero dizer, isso são histórias, nunca há factos, são coisas aproveitadas pelos americanos para escreverem livros e fazerem filmes, coisas assim... confesso que nunca liguei muito a isso... - A verdade é que nunca existem provas disso. Sabes quantas pessoas morrem anualmente em Portugal no Serviço Militar Obrigatório...? Não? Pois, não admira; são coisas que são bem abafadas pelos militares. Têm muito jeito para isso. E de vez em quando, estas coisas vêm a público, e o escândalo é enorme. Enfim. É o que se passa com estas «provas» de vida extraterrestre, há imensas provas e factos documentados, mas ninguém tem acesso à elas. De vez em quando há fugas de informação, mas nunca se conseguem documentos conclusivos ou provas definitivas, e essas «provas» passam a «rumores». Duvido que se possa falar de conspirações, ao ponto de dizer que existe colaboração entre os governos da Terra e os extraterrestres, isso para mim é ir um pouco longe demais... mas lá que foram capturados muitos OVNIs, lá isso foram... e muitos extraterrestres vivos, também. Pelo que sei, morrem pouco tempo depois de estarem no nosso planeta, vítimas de falta de alimentação, atmosferas venenosas, vírus, qualquer coisa assim... - Tudo que estou a ouvir é completamente inacreditável... não tenho palavras, não sei o que dizer! Um sorriso esbateu-se no rosto de Duarte Nunes. - Bom... não há muito mais que dizer. Como sabes, o chefe passou-nos a pasta. Vamos os dois estar presentes no Conselho Nacional; arruma as coisas, faz as malas, porque vamos partir para Beja. Paulo Vasconcelos quase que desmaiou.
2. Paulo já tinha estado em contacto com a hierarquia militar dos tempos da tropa, por isso não estranhou de forma alguma a segurança apertada envolvida no acesso à base de Beja. É certo, conhecendo como as coisas funcionavam «por dentro», duvidava que as metralhadoras dos seguranças tivessem munição, e que o aparato todo da identificação à entrada da base servisse de alguma coisa - seria muito fácil entrar numa base militar com uma desculpa estúpida qualquer - mas talvez para um estranho às lides militares aquela «encenação» parecesse convincente. Foram mesmo ao ponto de o fotografarem para colocarem a fotografia num cartãozinho plastificado para pendurar na lapela do casaco - e mais uma vez, Paulo pensou que se não tivesse cartãozinho nenhum e dissesse que «ia apenas à messe dos sargentos tomar um copo», provavelmente deixavam-no passar sem grandes problemas. Um jipe da Força Aérea escoltou o carro conduzido por Duarte Nunes até um dos complexos de hangares da base; mas esse não era aparentemente o seu destino. Pararam num edifício de aspecto recente junto aos hangares. Tipicamente do exército português, o edifiício não tinha qualquer identificação; se alguém entrasse na base por engano e perguntasse onde é que ficava o «Centro de Estudos de Vida Extraterrestre», ninguém lhe saberia indicar o caminho; mas se perguntasse onde é que ficava o edifício da sétima companhia, levavam-no ao sítio certo, mesmo que ninguém na base soubesse o que é que a sétima companhia fazia, até mesmo os guardas à entrada do edifício. Aliás, pelo ar dos militares no interior do edifício, provavelmente ninguém sabia de nada, para além de terem ordens para verificar continuamente a cada entrada se os visitantes tinham os documentos em ordem. Um estranho provavelmente julgava estar num complexo militar de alta segurança onde todos os militares juravam diariamente não revelar segredos. Paulo, contudo, acreditava que muitos dos militares estavam ali a cumprir o SMO - ou SEN como agora se chamava - e quando voltassem à vida civil, se lhes perguntassem o que é que tinham feito, responderiam apenas que tratavam de burocracia numa unidade qualquer. «Segurança através de obscuridade» parecia ser o lema das Forças Armadas portuguesas. Paulo podia quase jurar que os tripulantes do helicóptero que trouxera o alegado OVNI para os hangares nem suspeitavam do que estavam a carregar. Se calhar nem sequer os oficiais que tinham dado as ordens de recolha do aparelho sabiam do assunto. Na tropa, sabia-se apenas o que era preciso, e era escusado perguntar mais do que isso, porque ninguém sabia responder, de qualquer das formas. Foi conduzido a um enorme auditório, repleto de generais e almirantes mas também muitos civis. Muitos eram estrangeiros; aliás, a língua que se falava predominantemente era o inglês. A confusão era generalizada; estava a decorrer uma sessão que ilustrava num grande monitor o percurso do OVNI até ser abatido, mas Paulo já conhecia a história. Duarte Nunes desculpou-se por uns momentos, porque tinha de falar com alguém. Paulo foi conduzido para outra sala, trocou impressões com um funcionário do Ministério da Defesa, riram-se um pouco com a história dos homenzinhos verdes que tinham sido capturados, depois foi de novo separado. No meio da confusão toda acabou por fazer parte de um grupo que foi visitar o OVNI, e perguntou a si mesmo onde estava Duarte Nunes. O OVNI era tudo menos impressionante. Aliás, Paulo começou a duvidar seriamente que aquilo fosse, de facto, um OVNI, pois era igualzinho aos aviões tipo stealth fighters dos americanos. O casco, contudo, não parecia ser metálico, mas sim de plástico. Não tinha quaisquer marcas ou sinais ou sequer pintura. Nem rodas; estava pousado directamente em cima do chão do hangar. Cabos ligavam o OVNI a uma série de equipamento. Uma equipa de militares estava a trabalhar em cima do aparelho; de um dos lados viam-se as marcas dos disparos das metralhadoras. Não era nada impressionante; parecia um avião normal a ser abastecido. O guia do grupo explicava que o casco era feito de uma liga de materiais à base de cerâmica tecnologicamente pouco sofisticada, mas que na Terra não era usada para fazer aviões, mas - pasme-se! - fichas triplas! Aparentemente era um material excelente porque não se dilatava com o calor, de forma que era excelente para aparelhos que entravam e saíam de órbita. O Space Shuttle americano usava um material semelhante, embora não igual. Enfim. Paulo estava já desapontado; pensava ver um «disco voador» de metal brilhante que estivesse suspenso no ar por antigravidade ou outra tecnologia fantástica qualquer. Havia um buraco rectangular no topo, que o guia explicou que tinha sido cortado para aceder ao interior, pois não tinha sido descoberta qualquer porta ou mecanismo que desse acesso ao interior. O grupo então foi conduzido para uma espécie de rampa, do estilo das que servem os aviões normais em aeroportos civis, e um a um, foi-lhes dada a oportunidade de visitar o interior da nave espacial alienígena. Interior esse que era ainda menos impressionante que o exterior. A primeira impressão que teve foi de que estava num iate de luxo: o chão era forrado com um tapete vermelho felpudo; as paredes eram forradas a madeira. Existiam quadros nas paredes, com molduras modernas, mas aparentemente os extraterrestres apreciavam exactamente o mesmo tipo de arte abstracta que os terrestres. Era mesmo decepcionante. Paulo franziu as sobrancelhas; esperava tudo menos aquilo. Aliás, mesmo as proporções dos corredores, das salas interiores, até à altura a que os quadros estavam pendurados fazia lembrar um navio terrestre. Talvez a única indicação de que se tratava de um aparelho não construído na Terra eram os pequenos detalhes: por exemplo, não parecia haver nenhum tipo de suporte para os quadros. Não existiam interruptores para acender as luzes; toda a nave estava envolta numa luminosidade ambiente cuja fonte era desconhecida. Pequenos letreiros junto às portas tinham indicações numa escrita estranha - mas não tão estranha como isso: era estranhamente familiar, lembrando a escrita hebraica. O cockpit, ou a ponte, era um pouco mais interessante. A primeira coisa que Paulo notou foram as três poltronas muito confortáveis e desenhadas ergonomicamente, colocadas em frente a um écran negro como a noite. Os extraterrestres tinham de ter conceitos muito semelhantes aos terrestres - qualquer uma das poltronas adaptava-se perfeitamente ao corpo humano! Isso era extremamente estranho. Bem, uma coisa era certa: fosse quem fosse o piloto, este teria de ser um humanóide bípede, erecto, utilizando as mãos e as pernas para manusear os instrumentos da nave. Os instrumentos eram notavelmente simples - meia dúzia de painéis luminosos, pouco mais do que rectângulos coloridos com a tal escrita estranha. A ausência de instrumentos mais complexos do que uma manete - tipo os joysticks dos jogos de computadores - e um par de pedais para os tripulantes era impressionante. Por um lado, parecia a Paulo que tudo aquilo era uma enorme fantochada; decerto ninguém acreditaria que aquilo fosse uma nave espacial a sério! Nem sequer existiam cintos de segurança para os pilotos! Por outro lado, fazia sentido que uma civilização avançada simplificasse de tal forma as viagens no espaço que qualquer pessoa pudesse conduzir uma nave interestelar com a mesma simplicidade que na Terra se conduziam automóveis. Mas a ausência total de elementos estranhos fazia impressão a Paulo. Não haviam instrumentos esquisitos a flutuar no ar desafiando as leis da gravidade. Não havia uma atmosfera venenosa no interior. Ou tanques estilo aquários onde os extraterrestres repousassem durante a viagem num estado de animação suspensa. Tudo era tão... banal. Se aquela nave fosse colocada no Disneyworld, os putos não lhe achariam piada nenhuma. O guia não foi muito explicativo - indicava apenas o óbvio: isto é a consola central, aquele écran iluminava-se com imagens do exterior embora não se tivessem detectado quaisquer dispositivos no casco da nave que recolhesse imagens, aqui era a cadeira do piloto. Os quartos tinham vulgares beliches, de dimensões semelhantes aos que poderiam ser utilizados por terestres. Até a casa de banho fazia lembrar uma casa de banho terrestre, com sanita, lavatório e poliban, embora de design mais sofisticado que o terrestre... Em resumo, a nave impressionava menos do que qualquer nave de um filme de ficção científica com um orçamento reduzido. Qualquer coisa definitivamente não batia certo. Paulo voltou com o grupo ao hangar principal profundamente desapontado; a visita à nave espacial fora um anticlímax completo, depois do relato excitante de Duarte Nunes. De regresso a uma sala de espera qualquer, Paulo dirigiu-se a um tenente, ainda reconhecendo as patentes militares, e perguntou por Duarte Nunes. - O sociólogo da Polícia Judiciária, - informou. - Ah, o sociólogo? - O tenente consultou o relógio de pulso e um bloco-notas electrónico que trazia consigo. - Venha por aqui. - Conduziu-o por uma série de corredores, deixando-o com uma jovem alferes que o levou por mais uma parte labiríntica do edifício. Passou por três postos onde se teve de identificar e onde foi sumariamente revistado; estando tudo em ordem, os soldados faziam continência à oficial que o acompanhava. Esta passou por mais uma sala e deixou-o com outro grupo de pessoas. Paulo estava completamente perdido. Resolveu pedir indicações de novo. Desta feita, um alferes levou-o por mais um corredor. Uma placa dizia «Zona de Alta Segurança - Acesso interdito a pessoas não autorizadas». O que não impedia que diversas pessoas, civis e militares, se cruzassem com ele, numa azáfama que lembrava o Metropolitano de Lisboa em hora de ponta. A dada altura desencontrou-se do oficial que o conduzia, e teve de pedir mais indicações a um sargento que estava de guarda a uma porta que dizia, uma vez mais, que se estava numa área de acesso restrito. Este consultou a placa de identificação, tomou umas anotações noutro daqueles blocos electrónicos, e disse: - Tem meia hora, - abrindo-lhe a porta. - Meia hora? - disse Paulo, confuso. - Mas... o sociólogo da Polícia Judiciária... - Meia hora, - cortou o sargento, quase que empurrando Paulo para o interior da sala, fechando a porta atrás de si. Paulo ficou embasbacado perante a porta, que só se abria do exterior. - Merda! - exclamou. E só depois reparou que não estava sozinho. Estava numa espécie de sala de reuniões completamente pintada de branco. Uma mesa, também branca, tinha uma série de blocos-notas electrónicos, e também um grande número de papéis, dispostos caoticamente em cima da mesma. Existia um quadro branco, daqueles computorizados que permitiam que se imprimisse uma cópia do que se escrevia em cima dele. Uma das paredes tinha janelas de vidros duplos que dava para o hangar que continha a nave espacial; aparentemente, no meio de toda a caminhada, Paulo regressara ao ponto de partida. Outra parede tinha também uma janela de vidros duplos; dava para o que parecia ser uma sala de operações, mas Paulo não conseguia perceber o que se passava no seu interior. Cirurgiões com os seus instrumentos cortantes estavam entretidos com dois corpos em cima das respectivas camas de operações; a um canto da outra sala, dois soldados serviam de guardas. Sentada numa das cadeiras junto à mesa estava uma jovem bastante atraente, com um ar triste, envergando um uniforme azul muito claro, sem insígnias de patentes militares. - Oh, perdão, - começou Paulo, desculpando-se pela sua linguagem rude. - Que grande confusão que por aqui vai!... A jovem sorriu, afastando os cabelos compridos. Eram castanhos, lisos, e os seus olhos azuis fitaram Paulo com um olhar imensamente triste, contrastando com o pequeno sorriso que lhe dedicara. Paulo estendeu-lhe a mão. - Paulo Vasconcelos, da Polícia Judiciária, - apresentou-se, também com um pequeno sorriso. A jovem apertou a mão e disse apenas: - Myra. Paulo sentou-se a seu lado e abanou a cabeça. - Por mero acaso, não viu um detective da Polícia Judiciária, chamado Duarte Nunes? Um pouco gordo, já de idade, meio careca, óculos na ponta do nariz, sorridente? - A jovem abanou a cabeça. - Logo vi que não. Enfim. Disseram-me que ele estava por aqui, mas pelos vistos enganaram-se. Bolas. Meia hora, disse o guarda. Tenho que esperar meia hora. Enfim. Confusões da tropa. Típico. A jovem encolheu os ombros. - Tem sido assim todos os dias... - A sua voz era suave, quase melodiosa, e embora a sua pronúncia fosse correcta, era evidentemente estrangeira, o que explicava o estranho nome. - Calculo que sim. Estás aqui há muito tempo? Ela sorriu. - Sim, desde que aquilo chegou aqui... - E apontou para a nave. Paulo acenou afirmativamente. - Pois, eu tenho a sorte de só ter chegado hoje... - Têm sido interrogatórios dia e noite... também estás aqui para os interrogatórios? - perguntou ela. Paulo fez que não com a cabeça. - Interrogatórios? Não. Apenas de visita. Bom, presumo que tenha de assistir a uma reunião qualquer com os elementos do Conselho Nacional, mas isso é só à tarde. De manhã foi só para visitar as instalações, calculo eu... - Sorriu. - E parece que visitei todos os corredores e salas deste edifício, que - confesso! - não me interessa grandemente. A jovem sorriu e não disse nada. - Estou aqui evidentemente por engano, - disse ele. - O meu colega - Duarte Nunes - é o sociólogo da minha unidade. Mandaram-me esperar aqui por ele... - Ah, um sociólogo, - disse ela. - E ele vem aqui para os interrogatórios? - Não... vem assistir também à tal reunião do Conselho Nacional. - E subitamente franziu uma sobrancelha, receando estar a revelar demais. - E tu? És militar? Ela abanou a cabeça. Paulo olhou para os esquemas e diagramas em cima da mesa, que não lhe diziam rigorosamente nada. - Só por curiosidade... posso perguntar de onde vens? Falas português impecavelmente, mas com um leve sotaque... Nisto ela pestanejou, e pareceu não compreender a pergunta. - Desculpa? - Era só curiosidade... - Outras unidades tinham evidentemente os seus próprios esquemas de segurança. Paulo corou ligeiramente; será que não era suposto as pessoas saberem de onde vinham? Mas a placa de identificação que trazia ao peito dizia claramente o seu nome e função dentro da PJ. O que não serviu de nada para o conduzirem junto a Duarte Nunes. Apontou para a placa. - Não trazes uma coisa destas? És a primeira pessoa que vejo que não está identificada. Ela sorriu. - Acho que não é preciso. - E depois tornou-se mais séria. - Estás mesmo perdido aqui dentro, não estás? Paulo encolheu os ombros. - Suponho que sim... não sei onde estou. Que sala é esta? Que é que aqueles médicos estão ali a fazer? A jovem cruzou os braços em cima da mesa. - Não sabes? Paulo abanou a cabeça. Myra olhou pela janela onde a operação prosseguia. - O que é que vocês costumam fazer com os seres extraterrestres que apanham? Cortá-los aos bocados? Abri-los para verem como funcionam? Sei lá, qualquer coisa do género. Estão ali há várias horas... Paulo subitamente deu um pulo e interessou-se sobre o que se passava. - Então é isso que estão ali a fazer! Espantoso! - Mas não se conseguia ver bem o aspecto dos ditos extraterrestres. Pelo volume que ocupavam em cima da mesa de operações eram humanóides. Quanto a isso, Paulo não tinha dúvidas. - Como será o seu aspecto? - interrogou-se, aproximando-se mais da janela, mas em vão, era impossível descortinar qualquer pormenor. - Humanóides? Monstrinhos verdes com montes de tentáculos? Ela ficou muito séria, aparentemente não achando piada ao comentário de Paulo. - Não, são humanos, - disse ela. - Humanos? Humanos, como? - perguntou Paulo, curioso. - Como é que sabes, já os viste? - São tão humanos como tu, - afirmou ela sem sombra de dúvidas. Paulo voltou a sentar-se. - Mas isso é impossível, - disse ele. - Não é nada, - disse ela. - Quer dizer... a probabilidade de evolução paralela... OK, mas mesmo assim... é esticar um bocado... podem ser muito parecidos com os humanos, mas... - São humanos, - insistiu ela. - Mas como pode ser isso possível?? - Paulo estava espantado. - Mas humanos... iguaizinhos a nós? Por fora e por dentro? Geneticamente iguais? Myra pareceu zangada. - Sim, humanos, iguazinhos a ti, por dentro, por fora, pelos lados... estou a ver que só chegaste há pouco tempo, não é verdade? Senão, já sabias. - Levantou-se da cadeira e ficou a observar também a sala de operações. Depois voltou-se para Paulo. O seu cabelo esvoaçou, num gesto muito feminino. - Quer dizer que ainda não te contaram mesmo nada? Paulo abanou a cabeça. - Ainda não houve tempo... só vi a nave. - Quer dizer que também não sabes quem eu sou? A pergunta fora simples e natural - mas Paulo subitamente sentiu um suor frio que inexplicavelmente lhe percorreu o corpo. Abanou a cabeça - mas pressentia que já sabia a resposta. Myra apontou para o hangar, para a nave. - Eu era o piloto daquela nave que vocês abateram, - disse ela friamente. E Paulo ficou com a boca aberta durante talvez meio minuto, sem saber o que dizer. Os seus olhos fitaram os da jovem de cabelos compridos castanhos. O silêncio tornou-se quase obcessivo. Estava completamente sem palavras. - Ah, - fez então, mas não conseguiu dizer mais nada. - Todos os que entraram por aquela porta só me quiseram interrogar, - disse ela finalmente. - Mas começo a ficar cansada, muito cansada... - Eu... quero dizer... bolas, não sei o que quero dizer. Não sei se acredito no que estou a ouvir. Humanos, a viver fora da Terra? Ela encolheu os ombros. - Que há de tão especial nisso? Há humanos por toda a parte. - Mas... - Nada de mas; tu não sabes; acredita em mim. Há milhares de planetas habitados por humanos nesta galáxia. E se calhar noutras galáxias também, não sei; nunca viajámos para fora da nossa galáxia. - Voltou a sentar-se, e o seu pequeno sorriso desta vez não denotava tristeza, mas talvez sarcasmo. - Vocês, terrestres, ainda estão convencidos que são muito especiais, que estão no centro do Universo, não é verdade? Escusas de negar; eu conheço muito bem a vossa história. - Não percebo nada. Mas como podem haver humanos fora da Terra? Os humanos tiveram a sua origem na Terra, por evolução natural... Ela arqueou uma das finas sobrancelhas. - Quem disse? - Ah... os antropólogos, os cientistas... Darwin... as evidências genéticas... - Apenas mostram que houve evolução, sim, mas não dizem nada sobre a origem da evolução, - disse ela. - A Terra é apenas um desses milhares de planetas que dispõem das características essenciais para que a vida tal como tu e eu a conhecemos apareça. Há alguns milhares de anos terrestres atrás que os humanos foram também aqui introduzidos... - Mas... mas... se assim fosse... porque não houve contactos anteriores? - Não houve? - Ela riu-se. - A vossa história está repleta de alusões a isso, vocês é que teimam em ignorar isso, porque julgam que estão no centro do Universo. Os egípcios, os maias, os aztecas, todos eles lidavam quase diariamente com os «deuses que vinham do céu». Jesus Cristo. Leonardo da Vinci. Os magos que foram queimados pela Inquisição. Então neste século, os contactos multiplicaram-se, em especial quando vocês, hum... «descobriram» a bomba atómica e começaram a viajar no espaço. Houve quem começasse seriamente a pensar que chegara a altura de colocar a Terra na Aliança... Paulo abanou a cabeça. - Tudo isso é demasiado fantástico... mas e as descrições dos extraterrestres...? Os Grays não são humanos, são humanóides quanto muito... - Os humanos não são a única raça na Galáxia, nem sequer são a raça dominante... existem várias... - Ela suspirou. - É cansativo... já repeti isto uma centena de vezes, pelo menos. - Mas nenhuma das descrições e relatos de OVNIs fala de OVNIs pilotados por humanos, - protestou Paulo. - Nunca li isso em lado nenhum. Experiências genéticas entre extraterrestres e terrestres, isso já é outra história, há milhares de rumores e boatos. Ela sorriu. - Para isso teria de te falar de política dentro da Aliança... - O que é exactamente essa Aliança? - Oh, uma confederação, se quiseres, entre milhares de planetas e dezenas de raças. Os humanos são dos povos mais conservadores dentro dessa confederação. Acham que a Terra tem de desenvolver primeiro a tecnologia necessária para contactar a Aliança. Outras raças não pensam assim, acham que a Terra já demonstrou potencial suficiente, e que com uma pequena ajuda os terrestres podiam desde já avançar como membros. Outras raças têm uma visão muito mais pessimista: julgam que os terrestres são bárbaros, e como a Terra está fora da juridisção da Aliança, consideram que a Terra é um óptimo lugar para proceder a experiências ilegais... - Devias escrever livros de ficção científica; a seguir vais dizer que existe uma enorme conspiração na Galáxia, em conivência com os governos da Terra... Ela encolheu os ombros. -Há um mito que a civilização traz consigo uma certa carga de bom senso. Não é verdade; por exemplo, as guerras na Terra são muito mais violentas agora do que no passado. Existem mais interesses envolvidos. Existem armas mais mortíferas. A Aliança também não é um mar de rosas; na realidade, a Aliança só existe formalmente como um conjunto de planetas que se uniu para se defenderem dos inimigos comuns. - Inimigos...? - Sim, a Aliança está em guerra com várias nações galácticas... mas não era isso que eu queria dizer. Queria dizer que o facto da Terra não pertencer à Aliança tem consequências interessantes para muitas das raças menos escrupulosas, cujo objectivo é explorar os terrestres em benefício próprio... mas têm de fazê-lo em segredo, pois «oficialmente» o Conselho da Aliança declarou que a Terra era um planeta protegido. Estilo a protecção que os Estados Unidos dão ao Panamá, na Terra: uma nação independente, até que surjam problemas com o canal. É assim que a Aliança vê a Terra: um protectorado. Mas oficialmente os governos da Terra não sabem de nada. Oficiosamente, sabem-no, através das raças que já estabeleceram contactos... é complicado. Se a Aliança reconhecer que esses contactos existem, teria de intervir, no sentido de banir completamente o acesso à Terra. Usando a força, se necessário. Mas isso significaria alienar alguns membros da Aliança. E a Aliança, como disse, é uma espécie de confederação - esses membros podiam insurgir-se contra o Conselho e abandonar a Aliança. - A jovem sorriu. - Política, como vês. Acho que é uma das constantes do Universo: onde há inteligência, há também política. - Quer dizer que a qualquer altura a Terra poderia ser... invadida? - Não... como disse, a Terra é um protectorado. Se alguma raça atacasse a Terra, seria expulsa da Aliança, e esta declarar-lhe-ia formalmente guerra. Nenhuma raça vai arriscar isso; a Aliança é militarmente muito forte, embora politicamente não o seja. Por isso essas raças são mais... subtis. Estabelecem acordos com os governos da Terra, em troca de tecnologia e conhecimentos. Tenho uma ideia de que esses acordos são muito unilaterais: essas raças não estão propriamente interessadas em desenvolver o potencial bélico da Terra ao ponto deste se tornar num problema. São feitas imensas promessas que serão cumpridas apenas num futuro distante... e nessa altura, provavelmente a Terra acabará por desenvolver tecnologia própria, e ser aceite na Aliança como membro, tornando inútil esses acordos com essas raças. Como vês, eles estão a jogar muito bem: sabem que, enquanto a Terra continuar sob a protecção formal da Aliança, podem fazer o que muito bem lhes der na real gana com os terrestres, sem darem nada em troca; e mais tarde, como membro da Aliança, a Terra não ganhará nada com esses acordos. - Mas se esse tal Conselho oficialmente proíbe esses tipos de contactos... não poderiam impôr represálias, sei lá; fazer alguma coisa? Ela encolheu os ombros. - Política... isso precisa de consenso a nível do Conselho... e esse consenso não existe. O argumento é que, oficialmente, ninguém visitou formalmente a Terra. Isto é, não houve um contacto. Os governos da Terra também são obrigados a fazer segredo disto tudo. Se todos os habitantes da Terra estivessem conscientes do que se passa, provavelmente poderiam apelar para o Conselho, e isso acabaria com todos os problemas. Mas a verdade é que os governos da Terra estão «obrigados» ao segredo, senão... perdem todos os acordos que têm com essas raças. - Quer dizer... nós cá na Terra ouvimos imensos rumores e boatos que se trata de uma conspiração dos governos da Terra para nos manterem na ilusão de que não existe vida extraterrestre, mas na verdade a conspiração é a nível galáctico... Ela sorriu de novo, indiferente. - Qualquer coisa assim. - E isso não te preocupa? Myra encolheu os ombros. - Nem por isso. Não sou política, não sou militar... - Então o que és? - Uma turista, - disse ela simplesmente. Com um gesto muito feminino, sacudiu os cabelos. Colocou um sorriso enigmático nos lábios; seria a Mona Lisa também uma pintura de uma extraterrestre? Paulo já não sabia muito bem a que tronco se agarrar neste naufrágio, neste colapso de tudo em que acreditava. As coisas eram demasiado inacreditáveis para as conseguir absorver no curto espaço de tempo em que escutara a jovem extraterrestre. Talvez daqui a umas horas conseguisse compreender o que de facto se estava a passar. Tudo o que sabia era que uma nave alienígena estava arrumada num hangar do Alentejo; a prova disso estava do outro lado do vidro. E que o piloto dessa nave era uma jovem atraente de nome Myra que estava à conversa com ele. Tudo o resto era demasiado fantástico para ser imediatamente compreensível. - Uma... turista?? - perguntou Paulo, uma vez mais espantado. - Sim, uma turista... porque tanto espanto? A Terra é um paraíso para os humanos da Galáxia. É uma visita quase obrigatória para qualquer jovem rebelde que não sabe o que fazer ao dinheiro, - riu-se ela. Um riso cristalino, sincero. - Então existe dinheiro na Galáxia...? Ela procurou fazer um ar sério, mas evidentemente que não se estava a esforçar muito. - Claro que existe dinheiro; estamos a falar da raça humana, não estamos? E existe corrupção, vícios, trafulhices, ilegalidades, crimes, e injustiça social. Não penses que somos melhores do que vocês só porque somos tecnologicamente avançados. Mesmo a maioria das outras raças não vivem em sociedade «perfeitas»; isso é outro mito vosso. Acreditam que num futuro tecnologicamente avançado poderão abolir coisas como a doença, as injustiças sociais e coisas assim. Se existirem robots para tratar de tudo, poderão descansar à sombra da bananeira e não fazer nenhum. Isso é que era bom! De facto, esses robots até existem. Mas quem os fabrica vende-os a um preço elevado; só os ricos é que os podem comprar; logo, são os ricos que não fazem nenhum. Os pobres continuam a viver na miséria a economizar os seus ridículos salários até terem dinheiro para comprarem um robot que lhes trate de todos os problemas. A esmagadora maioria nunca o consegue fazer. E as minorias ricas têm centenas ou milhares de robots, que seriam mais do que suficientes para realizar todos os trabalhos para toda a população galáctica, mas ninguém no seu perfeito juízo pensa numa coisa dessas. Somos humanos, afinal de contas; a exploração do próximo é genética, está-nos no sangue, como vocês dizem. Paulo ficou embasbacado. Acabou só por afirmar: - Falas português perfeitamente... - Assim como outras sete línguas terrestres, - disse ela. - Acho que já passei tanto tempo na Terra como no meu planeta... - Mas porquê fazer turismo na Terra? Não se pode fazer turismo noutro lado? Acho completamente descabida essa ideia... então e nunca ninguém desconfiou? Ela abriu os braços. - Desconfiar de quê? Sou humana, tal como vocês. Mesmo que me analisassem o DNA não encontravam diferenças. E não tenho «implantes» ou outras coisas esquisitas dentro de mim. O meu sangue é vermelho como o vosso. Respiro o mesmo ar, como a mesma comida... - Mas porquê turismo aqui? - Ora, vocês não gostam também de viajar para lugares exóticos e remotos? Entrar em contacto com outras culturas, viver da mesma forma que os indígenas? Pois eu também. Porque não? Os planetas da Galáxia são todos monotonamente iguais. Pior do que isso, entre os planetas que pertencem à raça humana está-se a atravessar uma fase de extremo conservadorismo, hum, parecido talvez com o que vocês, terrestres, tinham no século passado. Puritanos. Por isso é que os humanos na Aliança não se mexem muito... estão agarrados a tradições e a ideais tradicionalistas... há um revivalismo das tradições históricas... e o nosso governo é muito conservador também, acho que lhe poderias chamar uma «ditadura benévola», se quiseres... no meu planeta, temos um Imperador, uma figura monárquica e hereditária, sem poder real, mas que intervém nos costumes, na história e na tradição da raça humana espalhada pela Galáxia. Enfim. Tudo isto para dizer que a Terra é um pequeno paraíso, não corrompido pelos ideais demasiado tradicionalistas dos planetas da Aliança. É uma maravilha! Adoro! - Voltou a rir-se. - No meu planeta, Andor, a capital do império humano, tu serias provavelmente preso por atentado à moral pública, pelas roupas que usas. - Quê? - Paulo olhou para a sua roupa; como detective que era, trazia um casaco, calças, e uma gravata. Mais conservador não seria possível. - A tua camisa, com essas mangas tão curtas, seria uma provocação - serias provavelmente condenado por um crime sexual menor. - Não posso crer! Mas... quero dizer, as civilizações avançadas da Terra sempre tiveram uma atitude mais liberal em relação a isso... vidé os Egípcios, os Gregos, os Romanos... - Pois, mas actualmente Andor acha que são essas mesmas atitudes liberais que destróiem os impérios. Mesmo na Terra acha-se que foram as orgias que destruíram com o Império Romano, enfraquecendo o espírito dos romanos, ao ponto de se deixarem conquistar pelos bárbaros... enfim, isto agora daria panos para mangas (piada!), seria uma longa discussão, e eu não quero estar a argumentar contra ou a favor destas «teorias». Tudo o que posso dizer é que, tal como vocês em férias tomam atitudes mais liberais com o vosso comportamento e a vossa maneira de ser, eu faço o mesmo, nas minhas férias na Terra. - Corou ligeiramente. - Se bem que acho que seria incapaz de estar numa das vossas praias ao sol, seminua... - Uma turista... não posso crer... e o primeiro contacto com vida extraterrestre tinha de ser logo com uma turista. Que vem cá porque pode vestir roupas escandalosas. Isto é inacreditável! - Que querias? Uma física nuclear ou uma política? Alguém que viesse com uma mensagem bonita do tipo: «Saudações, terrestres; vimos em paz»? - Myra riu-se. - Desculpa desiludir-te. Acho que vocês, terrestres, sofrem do mal de acreditarem em mundos cor-de-rosa. Olham para o vosso planeta e envergonham-se do que fizeram com o vosso mundo. Mas na realidade, a vossa bola de lama que gira em torno do vosso sol é muito ingênua; a Galáxia toda é composta de bolas de lama em torno dos respectivos sóis... Paulo já não sabia o que dizer. E, como em resposta ao seu desespero, a porta subitamente abriu-se de rompante. Tanto Myra como Paulo se levantaram de imediato. Um soldado em uniforme anunciou simplesmente: - Acabou o tempo. O detective e a turista extraterrestre entreolharam-se. Myra sorriu, melancolicamente. Paulo apercebeu-se de que a conversa na última meia-hora tinha sido uma espécie de alívio para ela. Os seus olhos pousaram por um momento na sala de operações ao lado. Seria isso que lhe estava reservada? Interrogatórios sem fim, e depois... dissecação? O seu coração deu um pulo. Uma sensação estranha de que tudo aquilo estava errado tomou-o de assalto e não pareceu querer abandoná-lo. Mas não havia nada que Paulo pudesse fazer. Ou havia? - Havemos de voltar a encontrar-nos, - disse Paulo, e não era uma frase feita bonita. Havia alguma convicção no que dizia. Myra pareceu aperceber-se dessa convicção e acenou afirmativamente. O soldado escoltou Paulo de regresso ao labirinto dos corredores da base de Beja, e fechou a porta atrás de si com um estrondo. Paulo estremeceu. Mas não existia nada de definitivo no Universo. A mudança era a única coisa que era constante.
3. Quando Paulo voltou a encontrar Duarte Nunes, era já ao fim da tarde. - Onde é que estiveste? Assisti a uma reunião extraordinariamente interessante! - exclamou o detective mais velho. - As implicações do que se discutiu foram tremendas... imagina! Vida para além da Terra... e a prova à nossa frente! Chegaste a visitar a nave? Duarte Nunes quase que não lhe dava oportunidade de responder. Eram perguntas retóricas, na sua maioria. Ao fim de meia hora de relatar a interminável discussão sobre o que se iria fazer com a nave - a NATO exigia que esta fosse deslocada para a Área 51, o famoso armazém americano para naves alienígenas capturadas, mas o governo português não estava de acordo. A nave tinha sido capturada em espaço aéreo português; se os americanos quisessem estudá-la, podiam fazê-lo, mas em solo nacional. Os americanos protestaram, alegando que não existiam condições para fazerem todos os testes que pretendiam. - O mais estranho desta história toda, - disse Duarte Nunes, ainda entusiasmado com toda a história, ao passo que Paulo Vasconcelos só pensava no destino que estava reservado à jovem Myra, - era que ninguém admitia publicamente que isto tudo já tinha acontecido no passado! Todos pretendiam que estavam a tratar de um assunto de rotina, mas não falavam de acontecimentos anteriores. Aparentemente, o governo português tem mais naves destas em hangares aqui na base de Beja, e alguns cadáveres de extraterrestres, e até se falou num acordo qualquer secreto entre o governo português e uma raça de extraterrestres... A dada altura, Duarte Nunes apercebeu-se de que o seu interlocutor não só não partilhava do seu entusiasmo como estivera calado o tempo todo, absorvido pelos seus pensamentos. - Que se passa, Paulo? Não achas isto tudo... fascinante? Ele encolheu os ombros. - Viu esses... cadáveres de que falou? - Não, estavam numa outra área de alta segurança... - A nave que visitou, não lhe pareceu estranha? Duarte Nunes sorriu, e os seus olhos brilharam. - Qualquer nave extraterrestre é estranha... nem que seja pelo facto de existir! - Mas a disposição do interior da nave... não a achou peculiar? - Peculiar? Em que sentido? - Ora, a forma como tudo estava disposto... curiosamente da mesma forma que nós, humanos, o faríamos se tivéssemos acesso à tecnologia. O outro detective franziu o sobrolho. - Onde queres chegar? Achas que a nave que vimos era uma fraude? - Nada disso. Apenas faço notar que, se a Terra dispusesse da tecnologia apropriada, construiria uma nave com exactamente aquele aspecto. Encolheu os ombros. - Talvez. Não sei. Que sabemos nós sobre as tecnologias de habitantes doutros planetas? - Sentou-se ao cockpit da nave? - Não, mas... - Mas se o fizesse notava que as cadeiras eram anatomica e ergonomicamente desenhadas para acomodar seres humanóides... ou mesmo humanos. - Onde queres chegar? Não sabemos nada sobre a origem da nave ou dos seus pilotos... - Isso não é bem verdade. Duarte Nunes arqueou as sobrancelhas. - Ah sim? Pelos vistos estás melhor informado do que eu! Conta lá então as tuas descobertas, senhor detective da PJ! Paulo encolheu os ombros uma vez mais. - Por mero acidente, vi os tripulantes da nave. Bem, pelo menos um deles; os restantes estavam numa espécie de sala de operações. - Tens a certeza? Disseram-me que os tripulantes tinham morrido pouco depois do impacto! - Duarte Nunes sorriu, claramente não acreditando nas palavras de Paulo. - Quer dizer, no relatório que lemos, eles diziam que tinham capturado os tripulantes ainda vivos, mas agora dizem que eles não sobreviveram, apesar dos esforços para os tratar aqui no hospital militar de Beja... - Hmmm, faz sentido... pois, falou numa conspiração, não falou? Não me admira que o governo português queira encobrir a verdade sobre os tripulantes... - Depois de anunciar quase publicamente a captura da nave? Francamente, Paulo, isso não faz sentido. Qual seria o interesse em manter os tripulantes em segredo, se até deixaram visitar o interior da nave capturada? - Abatida seria uma descrição melhor do que aconteceu. Duarte Nunes, surpreso com a afirmação de Paulo, não comentou. Paulo prosseguiu: - Mais ainda: creio que todos sabiam muito bem o que iam encontrar no interior da nave. Dr. Nunes, concordo com a sua teoria de que todos sabem muito mais do que dizem oficialmente. Este não foi o primeiro caso. Existem imensos casos, espalhados por esse mundo fora. E na maior parte deles, os militares não mostram grande surpresa em relação o que vão encontrar. Por engano, confundiram-me com alguém, e levaram-me para uma das salas para interrogar um tripulante. - A sério?! - exclamou Duarte Nunes, estupefacto. - Caramba! Quer dizer que os tripulantes foram mesmo capturados vivos... mas não compreendo: como é que os interrogam? Decifraram a linguagem deles, o quê? - A tripulante com que conversei era uma jovem humana de nome Myra, - disse Paulo. E passou a descrever sucintamente a conversa que teve com a extraterrestre. Duarte Nunes, surpreendetemente, nem interrompeu Paulo durante a descrição. No final, apenas assobiou. - Bem, bem, bem, meu caro Paulo, parece que tropeçaste em algo de grande... - Claro que ela podia ser uma actriz a contar uma história qualquer completamente louca, e eu fui parvo em acreditar nela, - disse Paulo, mas com ironia suficiente para que Duarte Nunes compreendesse que ele não acreditava nisso. - Mas não me parece. O desprezo que Myra exibiu por toda a política galáctica pareceu-me genuino. Ela foi bastante convincente, como extraterrestre... como turista extraterrestre. Reagiu como uma menina mimada que foi apanhada pelas autoridades a conduzir acima dos limites de velocidade. Se ela tivesse insistido em montes de palavreado técnico a explicar como vivia numa civilização avançada, eu se calhar não teria acreditado numa palavra. Mas não; a única coisa que ela mostrou foi um profundo conhecimento da Terra e dos seus habitantes, da perspectiva de uma turista que andou muito tempo por cá. O português dela era impecável. Se ela não fosse genuina, acho que teria outra atitude: a de um ser humano incrivelmente avançado e sofisticado, de uma civilização tão superior que desprezava completamente a nossa presença. Mas, curiosamente, ela teve a atitude inversa: a de uma pessoa insatisfeita com o que se passava no seu planeta e que vinha visitar regularmente a Terra como turista porque pode aqui esquecer com facilidade tudo o que se passa na tal Aliança. E gozar umas férias em descanso. Um homenzinho verde de tentáculos não teria o mesmo impacto... - Bem, bem, bem, - disse Duarte Nunes de novo. - Isto tudo é mais fascinante que o próprio facto de estarmos numa instalação militar de acesso restrito onde o governo português guarda os OVNIs que captura! - Nem mais, - concordou Paulo. A questão agora é: o que vamos fazer em relação a isso? - «Vamos»? - ironizou Duarte Nunes. - Não vamos fazer absolutamente nada, claro. Ou esqueceste-te que temos de jurar segredo...? Ah, esqueço-me que faltaste à reunião do Conselho Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários... pois, eles lá foram bem claros a dizer o que é que podia transparecer para o exterior. O Eugênio de Castro terá acesso ao dossier, claro, mas mais ninguém. Do ponto de vista oficial, a resolução do Conselho Nacional foi que os militares abateram um aparelho de origem americana em espaço aéreo nacional, sob pressão dos americanos e da NATO. O aparelho é oficialmente uma sonda orbital não-tripulada que escapou ao controle automático e que estava em risco de despenhar num local habitado; os americanos inisitiram que fosse abatido o quanto antes e os destroços enviados de volta para os Estados Unidos. Esse é o relatório que vai constar do dossier para apreciação do Presidente da República e do Embaixador dos Estados Unidos... - A sério? Agora nós fazemos parte da conspiração! - Paulo sentiu o sangue ferver nas veias. - Dr. Nunes, temos de fazer alguma coisa! Eles estão a dissecar os outros membros da tripulação; é o que provavelmente vão fazer com Myra quando descobrirem que ela não é mais que uma turista e que não podem obter mais informações interessantes dela! - Isso está completamente fora do nosso controle, Paulo. Estamos de mãos atadas. Jurámos segredo... - O Dr. pode ter jurado segredo, mas eu não jurei coisíssima nenhuma, - disse Paulo, irritado. - Implicitamente, pelo facto de teres sido convidado para assistires à reunião do Conselho, - relembrou Duarte Nunes. - Paulo, mesmo que pudessemos fazer alguma coisa, qual é a tua ideia? Raptar uma extraterrestre de uma base militar secreta? Não te parece um bocadinho difícil? E mesmo que conseguisses fazer isso, e até assumo que seja possível esconder a dita extraterrestre dos militares, e depois? Que ganharíamos com isso? - Podíamos revelar a verdade... - Sem provas? Quem acreditaria em nós? - Myra é a prova que precisamos! - exclamou Paulo. - Estou mesmo a visualizar a cena. Conferência de imprensa no Centro Cultural de Belém. «Meus caros senhores da imprensa, tenho aqui ao meu lado a jovem Myra, turista extraterrestre que foi abatida no Alentejo uns dias atrás, que nos vai revelar informações bastante interessantes sobre a política galáctica... senhores e senhoras, tenho o prazer de vos apresentar a jovem extraterrestre que foi raptada de uma base militar secreta portuguesa. Myra, boas tardes. Qual foi a sensação que teve quando foi abatida por uma esquadrilha de aviões portugueses, quando se deslocava ao Algarve em férias?» Não me parece que funcione, não sei bem porquê. Paulo insisitiu: - O Dr. tem os seus contactos, os seus amigos, o seu grupinho de pseudo-intelectuais, como lhes chama... podia apresentar-lhes Myra, numa reunião restrita. Ela podia contar a história dela e documentá-la em pormenor. Depois podia-se pensar na divulgação da verdade... Duarte Nunes abanou a cabeça. - Esquece, Paulo. Estamos no mundo real. No mundo real, ninguém rapta extraterrestres das mãos dos militares. Isso nunca iria acontecer! Só nas séries rascas de TV é que é possível fazer uma coisa dessas e não ser apanhado. A razão pela qual este tipo de segredos tem passado despercebido ao público em geral é que são mesmo... segredos. Além disso, não creio que o Mundo esteja preparado para uma revelação destas. Por alguma razão é que os militares e o governo mantêm isto em segredo. Como os segredos de Fátima. Há certas coisas que não podem ser reveladas. Paulo, não te esqueças nunca que és também um agente da Lei. Temos acesso a muitas coisas que os comuns mortais não têm, mas, por mais fascinante e romântica que seja a ideia de «libertar» uma extraterrestre deste grupo de «conspiradores», não o podemos fazer. - E o que aconteceu aos direitos dos cidadãos? Eles não têm o direito de saber o que é que o nosso Governo faz com os extraterrestres que captura? - Os cidadãos têm o direito de saberem tudo o que achamos que devem saber, - afirmou Duarte Nunes, peremptório. - E mais nada do que isso. Já imaginaste o que seria um mundo em que toda a gente soubesse tudo o que se passa? Seria... seria ingovernável, para dizer o mínimo... Paulo considerou as palavras do sociólogo. - Bem... nesse caso, o melhor que podemos fazer é evitar que dissequem Myra em nome da ciência. Acho que concorda com pelo menos isso. Duarte Nunes abanou a cabeça. - Não está nas nossas mãos. Especialmente depois do que Myra te contou. Se de facto é verdade que essa tal Aliança não se quer preocupar sobremaneira com a Terra, não nos cabe a nós estar a criar incidentes desagradáveis. Se é verdade que o governo português tem também um desses «acordos» com os extraterrestres, eles não ficariam lá muito satisfeitos se subitamente toda a Terra soubesse o que se passava. Teriam de intervir. Estás a ver o que seria uma nave extraterrestre a aterrar à frente dos Jerónimos e a dizer: «Nós fizemos tudo por tudo para adiar este momento; mas vocês forçaram-nos a isto. Bem-vindos à Aliança». A malta da Terra passava-se dos carretos! Subitamente perdíamos toda a nossa inocência. A opinião pública iria exigir dos seus governos que tomasse medidas. Resultado: uma guerra de declaração de independência da Terra. Ridículo! Não se pode estragar tudo. Pelo que Myra te contou, isto tudo é uma questão de tempo, mas quanto mais tempo os governos da Terra tiverem para decidir o que devem contar à população, melhor. Neste momento, as consequências de uma decisão rápida seriam avassaladoras. É melhor dar tempo ao tempo. Ainda há muito que fazer na Terra antes de chegarmos ao ponto em que conseguiremos assumir que não estamos sozinhos no Universo. Provavelmente precisaremos de vários séculos para chegar a esse ponto. E temos de caminhar bem devagar... - Tudo isso é muito bonito, mas estamos a sacrificar um ser humano, - fez notar Paulo. - Suponho que essa Myra seja atraente, não? Hmmm, bem me queria parecer... - Não vejo o que isso tenha a ver com a discussão, - protestou Paulo. - Tem muito a ver... se fosse um velho de meia-idade, careca e caquético, provavelmente não te mostravas tão interessado... Paulo resmungou. - Isso é injusto. Até parece que sou o mau da fita. Apenas me parece errado e injusto que as coisas sejam assim. Duarte Nunes insistiu: - Mas, mais uma vez, isso não está nas nossas mãos, não nos cabe a nós tomar decisões em relação a isso. Falo-te agora como profissional: sejamos honestos, a Terra não está preparada para este tipo de revelação que tu pretendes. Paulo meditou um pouco sobre o assunto e não fez mais comentários. - Bem. Agora que o assunto está arrumado, acho que podemos fazer as malas e irmo-nos embora daqui. O dia já foi suficientemente excitante para uma pessoa da minha idade, a meu ver. Nem quero acreditar no relatório que vamos ter de apresentar ao chefe. O Eugênio vai-se passar com esta história toda. - E, pondo um ponto final na discussão, o sociólogo e o jovem detective encaminharam-se para a saída.
4. Eugênio de Castro chamou Duarte Nunes pelo final da manhã. Torceu o nariz quando a fumarada anunciou a presença do sociólogo uns instantes antes deste entrar pela porta entreaberta. - Apague isso por um minuto, por favor. Já me chega a poluição de Lisboa... Duarte Nunes, um sorriso radiante nos lábios, obedeceu ao chefe. Sentou-se e suspirou, antevendo a discussão. O chefe revia as páginas do relatório que entregara há uma hora atrás. Retirou um carimbo poeirento de uma das gavetas e aplicou estrondosamente as palavras «Muito Secreto» em tinta vermelha à capa do processo. Depois reclinou a cadeira e disse: - Isto é tudo incrível demais, - comentou, também com um suspiro. - Bem. Vejo que não falou na conversa de Paulo com a tripulante da nave. Alguma razão para isso? Duarte Nunes encolheu os ombros. - Segundo Paulo, Myra vai ser dissecada mais cedo ou mais tarde. Não vale a pena colocar no relatório que os tripulantes sobreviveram. Ninguém precisa realmente dessa informação. Do ponto de vista oficial, os tripulantes morreram carbonizados na queda do aparelho. Eu só soube do contrário depois de ter falado com o Paulo. Não se falou dos tripulantes durante a reunião do Conselho, e foi isso que fomos lá fazer: ouvir as declarações do Conselho, e não entrevistar jovens turistas extraterrestres. - Prudência e sensatez, - disse o chefe da Brigada. Sem esconder um pequeno sorriso. - Estás a ficar velho, Diogo. Nunca pensei vir a associar essas palavras ao operacional mais irreverente da minha unidade. Duarte Nunes riu-se e encolheu os ombros. - Parece-me que desta vez não temos muito por onde escolher, pois não, chefe? - Pois não. - Eugênio de Castro pousou os óculos em cima do dossier e esfregou os olhos. Sentia-se cansado, e a manhã mal tinha chegado ao fim. - Bem. Pede à D. Isabel que faça a cópia do costume e que mande o original à Divisão. Mas a cópia é para ser guardada no cofre-forte, não quero isso espalhado pelos arquivos gerais. Ah, e diz para o Paulo vir ter ao meu gabinete logo que chegue, - acrescentou, à laia de esquecimento. - Logo que chegue...? Mas ele costuma vir sempre às nove, - fez notar Duarte Nunes, surpreendido. - É o mais pontual da casa... à excepção do chefe e da D. Isabel, quero dizer. - O próprio sociólogo era quase sempre o último a chegar, e se não fosse a questão do relatório que tinha de ser entregue, provavelmente só teria aparecido depois do almoço. Eugênio de Castro abanou a cabeça. - Não, hoje ainda não o vi por cá. A D. Isabel telefonou-lhe para casa, mas foi atendida pelo gravador. - Hum... gostava de saber o que é que ele foi fazer de tão urgente que não deixasse recado a ninguém, - disse Duarte Nunes, desconfiado. Mas também abanou a cabeça. Brincou com o cachimbo apagado no canto do lábio. Decerto não haveria motivos para se preocupar. Se calhar aproveitara o feriado de amanhã e ia fazer uma ponte... mas estranhou apenas que não avisasse com antecedência, não era o seu estilo. Curioso... Paulo Vasconcelos, nesse momento, estava a reservar um quarto numa pensão de Beja. Depois mudou de roupa para um camuflado que adquirira nos tempos da tropa. Via-se como uma espécie de comando em missão secreta. Não tinha um plano pré-definido. Agia por impulso, mas convicto que estava a proceder correctamente. Já não tinha ideias ilusórias sobre a apresentação da verdade ao grande público. Duarte Nunes convencera-o pelo menos disso: era estupidez divulgar aquilo que não podia ser divulgado. Mas havia uma inocente em jogo. Myra não tinha culpa de ter sido apanhada nas tramas da política e do secretismo envolvido em torno da verdade. Todas as ilusões que Paulo tinha em relação à boa fé dos governos da Terra tinham-se desvanecido em fumo. A ideia de Paulo era muito simples. Myra não podia servir de pretexto para a divulgação pública da verdade; mas pelo menos podia servir como uma fonte de informações sobre a verdade. Podia interrogá-la longamente sobre toda esta questão; e escrever um dossier que seria arquivado para as gerações vindouras. Paulo tinha a certeza que seria necessário esperar décadas, séculos até, para revelar essas informações. Mas sentir-se-ia com a consciência tranquila se os historiadores do futuro tivessem acesso à verdade toda. Pelo menos seriam mais benevolentes com os seus contemporâneos; pelo menos teriam existido pessoas no seu século que se tinham preocupado com o assunto. O facto de Myra ser humana e não um homenzinho verde com antenas e tentáculos era um factor extremamente positivo para o sucesso do seu plano. Seria fácil fazê-la desaparecer de circulação; com tantos secretismos, os militares não poderiam fazer uma caça ao homem muito eficaz, sem revelarem a razão pelo que o estavam a fazer. Além disso, Paulo estava a contar que a esmagadora maioria das pessoas que trabalhavam na base ignoravam o que se passava. Mesmo as que tinham conhecimento da nave provavelmente não sabiam que existiam sobreviventes da queda. Prova disso era a posição do Conselho Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários - apesar de terem convidado uma série de entidades, forçando-as a jurar segredo, não tinham revelado toda a verdade, apenas o que lhes era conveniente. O grupo de pessoas que sabia da existência de Myra era muito reduzido. O ideal, claro está, era jogar com isso, fazer Myra desaparecer mas dando a ideia que tinha sido... dissecada. Fazer com que todas as pessoas que conhecessem a verdade ficassem bem certas de que nenhum tripulante tinha sobrevivido à queda - mesmo que a sua sobrevivência tecnicamente se tivesse prolongado bem depois da captura da nave. Porque era certo que nenhum dos três tripulantes iria ser mantido vivo por muito tempo - era demasiado arriscado. Alguém podia desconfiar de três prisioneiros mantidos vivos por um tempo indeterminado. Além disso, tinham decerto extorquido todas as informações de que necessitavam - daí já terem dissecado dois dos tripulantes, restando Myra. Nessa noite, Paulo relembrou-se dos poucos treinos militares que tivera, e aproximou-se da base o mais que pôde. Investigou em pormenor a ronda da guarda. Claro, uma invasão nocturna estava longe de ser possível. Por mais desleixados que fossem os tropas portugueses, tratava-se de uma base de alta segurança, nas mãos da Brigada Aerotransportada, que era treinada por oficiais da NATO. Qualquer tentativa de invasão da base era impossível de ter sucesso. Paulo tinha de entrar pela porta da frente e saír pelo mesmo caminho, e confiar na desorganização e na burocracia das instituições portuguesas. O plano mais simples e mais ingênuo era o que teria mais probabilidades de suceder. Mas não era má ideia ter um plano de fuga alternativo, e Paulo já tinha uma ideia do que podia fazer em caso de emergência: tomar a rota do lixo. Era recolhido pela Câmara Municipal de Beja por volta das três da madrugada, e ninguém controlava o interior do camião do lixo. O problema seria esconder-se até àquela hora, mas isso teria de ser improvisado. Regressou ao seu quarto em Beja. Tinha trazido um computador portátil e uma impressora laser. As maravilhas da tecnologia facilitavam enormemente as falsificações simples de que precisava. Em pouco tempo conseguira replicar a placa de autorização que ostentara no dia anterior. Mas desta vez exibia o nome Dr. Paulo Vasconcelos, médico forense da Polícia Judiciária. Os seus conhecimentos de Medicina seriam mais do que suficientes para enganar qualquer médico que estivesse na base; era pouco provável que alguém resolvesse colocar à prova o que Paulo sabia de Medicina Forense. Mesmo um médico verdadeiro não sabia de tudo. E se alguém quisesse confirmar o nome e posto de Paulo junto da PJ, isso não seria muito grave. Claro que podia ser apanhado em flagrante delito, e ficariam com o seu nome e contacto na PJ, mas Paulo tinha a certeza de que, com toda a burocracia inerente, seria extremamente complicado associá-lo directamente ao rapto da extraterrestre. Estava bastante confiante na ineficiência dos organismos portugueses. Afinal de contas, existiam milhares de pessoas bem mais suspeitas do que ele. Para começar, Paulo Vasconcelos oficialmente não sabia da existência dos tripulantes vivos. Existiam muitas pessoas que sabiam, e essas seriam as principais suspeitas. Por isso, foi num carro alugado que se apresentou junto da guarita da base. Apresentou uma carta falsificada da PJ em como confirmavam a sua identidade, assim como um fax alegadamente enviado da base a autorizar a sua entrada. Evidentemente que o guarda desconfiou, pois não tinha nenhuma indicação no sentido de deixar passar um agente da PJ. Precisava de confirmar. - Claro, - disse Paulo, despreocupado. O guarda levou o fax, o cartão da PJ e a carta falsificada. Voltou pouco depois com um tenente que lhe bateu a continência. - Não temos nenhuma indicação de uma visita de um agente da PJ hoje, - disse o tenente secamente. - Pois não, - confirmou Paulo. - Venho da Brigada de Crimes Extraordinários, que lhes enviou hoje à tarde este fax. Venho assistir a uma operação médica, - disse ele. - Qual operação médica? Paulo encolheu os ombros. - Essa informação é classificada, meu tenente. - Mas explicou com precisão aonde se tinha de dirigir. - Disseram-me que me devia apresentar nesse local às 10 da manhã. O tenente franziu o sobrolho; provavelmente desconhecia o que se passava nessa zona da unidade. Mas escoltou Paulo ao interior de um dos edifícios mais próximos. Aí entregou Paulo a um capitão, que verificou as suas credenciais, que não tinham nada de suspeito - afinal de contas, Paulo era um agente da Brigada de Crimes Extraordinários. - Não há nenhuma operação marcada para as dez horas de hoje, - disse o capitão. - Não sei como lhe disseram uma coisa dessas. Paulo encolheu os ombros. - Apenas cumpro ordens, meu capitão, tal como o senhor. Não me surpreenderia que tivessem chegado mais pessoas para o mesmo fim... O capitão pigarreou. - Nessa zona só está marcada uma operação para depois de amanhã, e não temos autorização para deixar ninguém entrar antes disso. E o seu nome não consta de lista nenhuma, excepto na dos visitantes de anteontem, claro. Paulo jogou o seu primeiro trunfo. - Não, não, está-me a confundir com as pessoas que vieram à reunião do Conselho Nacional para as Observações de Fenómenos Extraplanetários. Mas como pode confirmar, eu não estive presente nessa reunião, estive nos trabalhos preparatórios para esta operação médica de depois de amanhã. - Tenho de confirmar, - disse o capitão. - Martins, revista aqui o senhor agente, e prepara a papelada, - acrescentou para um dos sargentos de dia. As coisas estavam a correr bem. O sargento torceu o nariz para a máquina fotográfica que Paulo trouxera. - Não são permitidas máquinas fotográficas dentro da base, - disse, peremptoriamente. Paulo encolheu os ombros. - Como quiser, mas no fax que trouxe vem referida a lista de equipamento que fui autorizado a trazer. - Esta lista vem de Lisboa, bolas, - disse o sargento. - Não posso verificar isto agora, hoje é feriado municipal em Lisboa. Esse era o segundo trunfo de Paulo. - Pode sempre ligar ao oficial de dia da unidade... O sargento seguiu a sugestão. Entretanto, o capitão regressava com duas folhas de papel. - De facto, o seu nome não consta da lista de presentes da reunião, mas sim dos que visitaram o Edifício J, - confirmou ele. - Precisamente, meu capitão, - disse Paulo, com um sorriso. A confusão desse dia jogava a seu favor. - Onde foi o Martins? - Confirmar qualquer coisa, - afirmou Paulo, inocentemente. Um minuto mais tarde, regressou com cara de poucos amigos. - Meu capitão, este senhor diz que precisa de levar a máquina fotográfica lá para dentro, mas como sabe é proibido, - disse o sargento, ostentando o fax. O capitão leu o fax na diagonal. - Bem, aqui diz que pode... confirmou isto, Martins? O sargento encolheu os ombros, aborrecido. - É feriado em Lisboa... o oficial de dia não sabe de nada, e não conhece nenhum «Tenente-Coronel Sousa» nessa unidade. Não se consegue contactar lá mais ninguém... Mas o capitão não levantou grandes ondas. - Desde que não tire fotografias a torto e a direito... não vejo qual o mal disto. - Obrigado, meu capitão, - disse Paulo, apropriando-se da máquina antes que o capitão mudasse de ideias. - Bom, isto está uma enorme trapalhada, - disse o capitão, irritado, mas não com Paulo, apenas com a burocracia. - Você devia ter vindo com o Modelo 3 e não com esta papelada que não me serve de nada. - Foram coisas à última da hora, - disse Paulo. - Como hoje era feriado, não conseguiram enviar o Modelo 3 a tempo - Paulo ignorava completamente o que isso era - mas por isso é que mandaram o fax do Estado-Maior a confirmar, assim como esta carta da minha Brigada. - Seja, - disse o capitão. - Pelo que percebi, só vai fazer trabalho preparatório, não é verdade? A operação é só para depois de amanhã. - Sim, vou ter de voltar com uma colega minha que já está cá, - disse Paulo, cautelosamente. Agora é que as coisas se começavam a complicar... O capitão releu a papelada. - Diz aqui que vai acompanhar uma Drª Maria de Barros, - disse ele. - Mas não temos aqui nenhuma Drª Maria de Barros. Nem interna, nem visitante, nem nada. Paulo encolheu os ombros. - Não sei de nada, meu capitão. Talvez consiga encontrar a papelada relativa à Drª Barros enquanto eu trato das coisas...? O capitão suspirou profundamente. Mas continuava a não estar desconfiado; apenas aborrecido por lhe ter calhado um problema burocrático complicado de resolver. Paulo lembrava-se muito bem dos tempos passados na tropa: o que qualquer militar detestava mais era ter de tomar decisões, pelas quais teria de responder mais tarde. Por isso, o que faziam era aldrabar o máximo que pudessem, deixando tudo mal feito, porque se alguma coisa corresse mal, iriam defender-se com a trapalhada e a desorganização causada por outros. E em Portugal era muito raro assistir a intervenções directas dos Tribunais Militares; as altas patentes não gostavam de expôr a sua desorganização acusando oficiais de negligência ou de mau trabalho. Nunca se sabia quando o feitiço se voltava contra o feiticeiro, ou seja, um juíz militar nunca sabia quando é que ele próprio seria julgado. Assim sendo, a tropa era geralmente benevolente. Não lixes o teu próximo para que ele não te lixe a ti. Logo, o capitão deu ordens ao sargento que arranjasse a documentação necessária, que incluisse o nome de Paulo na lista dos visitantes autorizados, e que o escoltasse até ao Edifício J. Tudo estava a correr como esperava. Melhor ainda: todos os soldados nos vários postos de controlo eram diferentes do dia em que ele estivera ali pela primeira vez, o que só melhorava a sua situação; Paulo tinha passado por um psicólogo por erro, e agora estava a passar por um médico legista. Teve a lata de perguntar onde poderia mudar de roupa para umas batas médicas; após alguma confusão, indicaram-lhe um vestuário onde se encontravam as batas. Felizmente o acesso ao vestiário era comum aos dois sexos; isso ia facilitar a tarefa mais tarde... Paulo foi muito rápido a escolher não uma, mas duas batas, envergando uma por cima da outra. Mesmo após ter sido revistado, ninguém reparou no assunto; e como claramente não levava mais nada, excepto a máquina fotográfica Polaroid, deixaram-no entrar na sala onde tinha visto Myra pela primeira vez. Advertiu que tinha de ficar sozinho por um momento nessa sala, depois teria de ir à sala de operações propriamente dita se fosse o caso. Myra parecia estar a dormir quando ele entrou, mas levantou-se bruscamente. Ia para dizer alguma coisa, e os seus olhos claros reconheceram-no quase de imediato, mas Paulo levou o dedo aos lábios e ele disse, muito rapidamente: - Não digas absolutamente nada; estou aqui para te levar para fora da base, tens de confiar em mim completamente e fazeres exactamente o que digo sem fazer perguntas. Não respondas a absolutamente nenhuma pergunta que te fizerem sem meu consentimento. E agora temos de nos despachar, tens de mudar de roupa o mais depressa possível. Myra hesitou, mas algo no olhar de Paulo convenceu-a de que ele estava a falar a verdade. O jovem detective tirou primeiro o seu par de batas, mas depois também tirou o pullover que trazia; despiu as calças (para horror de Myra) e livrou-se de uns calções curtos que tinha colocado por baixo das mesmas. - Tira esse teu fato e veste isto, mas tens de te despachar: Não sei se estamos a ser observados por uma câmara e pode ser numa questão de minutos que alguém se lembre de olhar para os monitores. Descansa, eu fico de costas. Myra obedeceu sem uma palavra. Ficava com um aspecto ridículo, mas com a bata por cima, não se notava grande diferença. Paulo prendeu-lhe os cabelos num rabo de cavalo simples, colocou-lhe um par de óculos antigo, e tirou-lhe uma fotografia com a Polaroid. Com precisão, utilizou um X-acto para cortar da fotografia a parte relativa ao seu rosto, e aplicou-a noutro cartão falsificado que ostentava o nome «Dra. Maria de Barros». A operação levou talvez trinta segundos. Agora ia começar a parte verdadeiramente complicada. Primeiro, tirou o rolo da Polaroid e inutilizou-o; substituiu por um rolo novo que trouxera num bolso. Depois, amarrotou o fato de Myra e colocou-o na sacola onde trouxera a máquina e que tinha sido devidamente revistada. - Isso nunca vai funcionar, - comentou Myra em voz baixa, mas de facto impressionada com as idéias de Paulo. Este apenas lhe dedicou um pequeno sorriso. - Vamos à parte mais complicada; para todos os efeitos, és a Dra. Maria de Barros, minha colega, e vamos dirigir-nos à sala de operações. Felizmente que não está lá ninguém neste momento. Myra suspirou. - Levaram-nos dali ontem de manhã, - disse tristemente. - Não me falhes agora, Myra. Eu estou a contar com a imbecilidade da tropa, mas há gente cá dentro que não é parva. Além dos americanos, claro, que andam por aí a torto e a direito. Daqui por algum tempo vão descobrir que algo não está bem. Mas estou a contar que a segurança seja tanta que não vamos encontrar ninguém que te conheça. Afinal de contas, oficialmente, estás morta, o que é para nós uma enorme vantagem... Saíram da sala, e obviamente que o soldado de serviço desconfiou por ver mais uma pessoa a saír da sala, mas antes que protestasse, Paulo exibiu a ordem forjada em que a Dra. Maria de Barros o iria acompanhar. - Vamos precisar de entrar na sala de operações para uma vistoria técnica, e depois agradecia que nos indicasse a saída, - pediu Paulo. O soldado resmungou, mas obedeceu. Paulo ficou aliviado - receava que ele ou ela fossem revistados uma vez mais. Mas a verdade é que eles só deviam ter ordens para revistar as pessoas à entrada; mas provavelmente ainda seria revistado quando fosse saír da base. Ainda havia muita coisa que poderia correr mal. Foram levados para a sala de operações, e Myra hesitou visivelmente. Paulo agarrou-lhe firmemente no braço e apenas sussurou: - É apenas um segundo; e eles já não estão lá. - Depois abriu a porta, entrando na sala de operações. Usando um pequeno truque, dissimulando as suas palavras, falando de forma a que apenas Myra o ouvisse, disse, rapidamente: - Estamos aqui oficialmente a fazer uma vistoria técnica à sala de operações. A operação vai ser depois de amanhã. - Myra gemeu, mas Paulo apenas a segurou com mais força. - Não podemos fazer nada por eles, como muito bem sabes. Finge que estás a observar tudo na sala, a disposição das camas, o equipamento que por aqui estiver, de forma profissional. Nada de hesitações. São apenas cinco minutos. Myra pareceu ter sérias dificuldades em fazer algo de racional, e Paulo quase que entrou em pânico por ela ter ficado perfeitamente estática, sem saber o que fazer, enquanto que ele, por sua vez, começou a fazer uma inspecção metódica ao equipamento. Tirou algumas fotografias com a Polaroid. Ao fim de algum tempo, Myra pareceu entrar em actividade, e ligou e desligou alguns instrumentos eléctricos, verificou a posição de outros, embora se recusasse a aproximar das camas no centro. Paulo deu-se por satisfeito e fez sinal a Myra para abandonar a sala. Antes de abrir a porta, murmurou, de forma quase inintelegível: - Vamos agora saír; tenho uns papéis que autorizam a tua saída na minha presença. Não fales, não digas nada, deixa ser eu a falar. Ok? - Ela acenou afirmativamente e saíram. O soldado pôs-se em sentido. - Terminámos o nosso trabalho, - afirmou Paulo com firmeza. - Por favor escolte-nos para os vestiários. O soldado, obediente, encaminhou-os pelos corredores até à porta comum dos vestiários. Paulo fez uma curta verificação de que estavam ambos vazios. Depois sussurrou: - Espera um minuto por mim; trouxe-te alguma roupa, nada de especial, mas vai ter de servir. - Estava tudo a correr tão bem que provavelmente não iria ser necessário usar o plano B. - O tempo urge; não sei quando é que vão descobrir que não estás na tua cela, como devias. - Mudou-se rapidamente e passou a Myra a roupa que trazia por baixo: uns calções e uma T-shirt, a única coisa que conseguia dissimular por baixo da sua camisa e jeans. Mas teria de servir. Myra desapareceu no vestiário feminino e emergiu pouco depois. - Os calções estão grandes demais, claro, mas pode ser que não notem muito... enfim... não havia maneira de trazer outro tipo de roupa. Vamos embora. O soldado voltou a acompanhá-los sem um comentário. Myra ajustava discretamente os calções de forma a não parecerem tão grandes; a T-shirt revelava a plenitude dos seus seios, nús por baixo do tecido de algodão. Bem, pode ser que os distraia, pensou Paulo, embora estivesse ciente de que esta era agora a parte mais complicada... Mas a sorte parecia estar sempre do seu lado. Chegou ao posto inicial de controle; não estava o capitão, apenas o sargento. O capitão poderia desconfiar de uma jovem atraente em T-shirt e calções; o sargento estava mais interessado no generoso par de maminhas e nas elegantes pernas bronzeadas da jovem. Fez um pequeno sorriso, muito discreto, coçou o lábio superior e apenas comentou: - Tão depressa? - A nossa autorização não nos concedia mais tempo, - fez notar Paulo Vasconcelos, num tom de voz que esperava ser suficientemente convincente na sua tristeza. - É pena... mas está tudo em ordem, penso eu. Posso assinar a folha de saída? O sargento encolheu os ombros e passou-lhe o bloco-notas electrónico, dizendo: - Sabe que ainda não descobrimos a documentação da sua colega...? O meu capitão está neste momento ao telefone com Lisboa, parece que os registos se perderam... - Ah sim? - fez Paulo, fingindo surpresa. - Bem, a Dra. vai assinar aqui e deixar-vos a placa de identificação, se quiserem... podem depois verificar tudo com calma... até porque têm aqui o contacto dela, e o meu consta do fax... - Mais um conjunto de tretas; a «Dra. Maria de Barros» constava como assistente da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa, e seria uma questão de minutos verificar que não existia lá ninguém com esse nome. Mas, tal como suspeitara, o sargento não ia verificar nada no momento. Chamava-se a isso «engenharia social», a forma mais eficaz de penetrar segredos de qualquer espécie: agindo e comportando-se como alguém que estivesse dentro do meio, sem hesitações, era um milhão de vezes superior a um conjunto de documentos correctamente forjados... meias mentiras ditas de forma convincente eram por vezes mais aceitáveis do que a verdade, contada de forma hesitante... Paulo aprendera isso nos treinos para detective. Nunca pensara em usar esses conhecimentos. Aliás, agora que pensava no assunto, estava a cometer crimes atrás de crimes. «Mas a causa é justa», raciocinou. «Vão matar Myra; ou talvez prendê-la para sempre, ou pior ainda. De qualquer das formas vão abafar tudo, e dizer que ela morreu depois da queda. Subverter a verdade. Não estou a fazer pior do que eles, antes bem pelo contrário....» Paulo podia ser um jovem romântico, mas também concordava, em certa medida, com Duarte Nunes. Estava posta de parte qualquer revelação oficial ou oficiosa da existência de Myra. Contra isso não havia argumentos. Mas uma coisa era esconder informação, a verdade - como doía a Paulo pensar sequer nisso! - outra era matar uma inocente apenas por causa dessa informação. E isso ia contra todo o seu ser. Não podia concordar com isso. Assinou o documento, recordando-se no último momento de o datar à maneira militar - o que só iria ajudar a tornar convincente a sua história - e lançou um olhar significativo a Myra. A jovem compreendeu perfeitamente; e apesar da mão lhe tremer ligeiramente, não o desiludiu. - Preciso de preencher o relatório de visita, - acrescentou Paulo. Sabia perfeitamente que não se podia «esquecer» disso, seria imediatamente suspeito. - Claro, sirva-se, - disse o sargento com um sorriso que era dirigido à «Dra. Maria de Barros», e entregando-lhe novo bloco-notas electrónico. Perdiam-se preciosos minutos... a qualquer momento... Tocou o telefone na secretária do sargento. O coração de Paulo deu um pulo. Garatujou de forma quase irreconhecível as seguintes palavras: «Dr. Paulo Vasconcelos, visita de inspecção de rotina à sala de operações para o dia 15. Conferido todo o equipamento. Tudo em ordem» O sargento atendeu o telefone. - Não, o capitão não está aqui... urgente? Certo, vou já chamá-lo, aguarde... Fez sinal ao soldado. - Traga cá o nosso capitão, um assunto de extrema urgência... tem o alferes Bastos em linha. Eu fico aqui a tratar da papelada com estes senhores. - O soldado fez continência, rodou sobre os calcanhares e desapareceu em passo acelerado. O pulso de Paulo tornou-se irregular; Myra olhou para ele com um olhar amedontrado. Mas não havia nada a fazer. O sargento, nada incomodado com a «urgência», escrevinhou uma série de coisas, depois recolheu os cartões identificativos e passou-lhes novos, sem as fotografias, apenas com o nome, que eram o salvo-conduto para a saída. Paulo começou a ficar em pânico; os passos do capitão aproximavam-se. Este vinha sorridente, como se também não estivesse minimamente preocupado com a «urgência». - Sargento, verificou a máquina fotográfica? Depois mande-os embora. O sargento resmungou qualquer coisa de inintelegível mas depois acrescentou. - Não, meu capitão; desculpe lá o mau jeito, mas de facto esqueci-me. - O seu ar enfadado recaíu sobre Paulo enquanto o capitão atendia o telefone. - Rotina; os rolos das máquinas têm de ficar cá. Serão depois enviados, após inspecção, para a sua morada. Lá se iam partes das provas... mas pelo menos Paulo ficou satisfeito de ter destruído o primeiro rolo, o que tinha a fotografia de Myra para o cartão de identificação. Desajeitadamente abriu a máquina; o rolo caíu-lhe para o chão. Debruçou-se e apanhou-o. O capitão exclamava: - Desapareceu? Quem? Quando? Aonde? Porque é que só agora me informaram disso?! - Desligou o telefone, aparentemente furioso. - Martins, há problemas lá dentro; chama a PM, parece que fugiu uma prisioneira... deixa estar que eu trato destes senhores. Desculpem a confusão, - disse num sorriso sincero. - Problemas, só problemas... olhe, extraviou-se de facto a documentação da Sra. Dra. , mas da secretaria da Universidade, que hoje também está fechada, prometeram que nos mandavam uma cópia de tudo amanhã, por fax ou pela Internet... - Encolheu os ombros. - Estas coisas à pressa correm sempre mal, não é assim? - E eu que venho de Lisboa e perdi o meu feriado, - disse Paulo, com um sorriso. - Mas ordens são ordens, e a verificação tinha de ser feito hoje, pois a Dra. Barros amanhã tem uma palestra... - Claro, claro... mais uma vez, as nossas desculpas. O praça Andrade acompanha-o à saída. Tenha um bom dia... e uma boa viagem, até Lisboa. - Obrigado, - agradeceu Paulo, aliviado, e Myra sorriu. O soldado escoltou-os, fechando a porta atrás deles, mesmo na altura em que o sargento aparentemente vinha em passos largos pelo corredor... mas Paulo, Myra e a sua escolta afastavam-se rapidamente, chegando ao local onde tinha deixado o carro... o soldado fez-lhes continência e também lhes desejou os bons dias... a porta do posto de controlo abriu-se de rompante e emergiram de lá dois soldados armados, a correr... Paulo girou a chave na ignição, minutos, tinha apenas minutos, felizmente o carro pegou à primeira, contrariando a Lei de Murphy, e em segundos estava junto do portão, deixando os soldados para trás. Pelo retrovisor reparou que davam meia volta; decerto para informarem telefonicamente que estava no portão. - Sabes pôr um cinto de segurança? Óptimo. Agarra-te bem, isto vai ser mesmo por uma unha negra... - avisou Paulo. Conduziu o mais devagar que os seus nervos lhe permitiam até ao portão; entregou os distintivos identificativos da saída; o tenente de há pouco cumprimentou-os, verificou as credenciais, sorriu, desejou os bons dias... o telefone já estava a tocar e um soldado berrou: - Meu tenente, meu tenente, uma chamada urgente do nosso capitão! Mas Paulo já tinha saído do quartel. Ainda procurou andar o mais devagar possível, como se nada se passasse, gotas frias de suor a escorrerem-lhe pelo rosto... mas logo que chegou à primeira curva, acelerou ao máximo, fazendo chiar os pneus. Tinha minutos de avanço! Minutos! O plano B teria sido muito menos arriscado, mas agora era tarde demais para chorar... a única hipótese que tinha agora era na velocidade. Myra fechou os olhos e agarrou-se com força à porta. Paulo ainda gracejou: - O quê, fazes uma viagem interestelar numa nave que foi abatida e tens medo de andar de carro? - Piadinha, - disse ela, de dentes semi-cerrados, com o leve acento estrangeiro que possuía. - Além do mais, era eu quem estava a pilotar na altura. Paulo descreveu curvas fora de mão, fazendo chiar os pneus, deslocando-se a tanta velocidade que nem se sentiam os buracos da estrada. - Vai dando umas olhadelas para trás, a ver se nos perseguem... - Como é que se chamam aquelas coisas grandes, com um rotor de pás barulhentas? - perguntou ela. - Quê, helicópteros? - sugeriu Paulo. - Vêm dois atrás de nós, - disse ela, olhando pelo retrovisor lateral. - Merda! - exclamou Paulo. - Ok, agora agarra-te mesmo bem, - disse, cerrando também os dentes, guinando para fora da estrada. Não podia fugir de helicópteros. Felizmente, estava em pleno Alentejo, que é só planície, e um carro quase que anda à mesma velocidade fora da estrada. Infelizmente, claro, havia poucos sítios onde se esconder. Aos solavancos, o carro desceu, em sentido a uma ribanceira, no fundo da qual estava um pequeno ribeiro, agora quase seco devido à proximidade do Verão. - Quando eu parar, sais o mais depressa possível, ouviste? E atira-te para junto do ribeiro, perto dos arbustos... O carro continuou o seu percurso descendente, agora batendo em tudo que eram rochas. Paulo fazia um esforço sobrehumano para continuar no seu caminho. Nisto começou a ouvir as pás dos helicópteros. Mas antes de entrar em pânico, travou o carro, a poucos metros do ribeiro, abriu as portas e berrou: - Agora! Pira-te! - e saltou, com o carro ainda em andamento. Quase que nem teve tempo de verificar se Myra o seguira ou não. Tropeçou, rebolou, deu cambalhotas na terra, que se transformou em lama; tinha atingido o ribeiro. Com um estrondo, carro e condutor atingiram o ribeiro praticamente ao mesmo tempo, embora não no mesmo sítio. Uma fracção de tempo mais tarde, ouviu o zunir das pás dos helicópteros, e o rugir das metralhadoras; algumas balas silvaram perto de si, umas atingiram o depósito de combustível do automóvel, que explodiu numa chama laranja violenta; Paulo mergulhou no ribeiro e rezou para que Myra tivesse feito o mesmo. Seguiu-se novo estampido; depois os helicópteros, que sobrevoavam a zona. Mas não aterraram; deram meia volta e, surpreendentemente, regressaram para onde tinham vindo. Paulo aproximou-se da margem. O carro continuava a arder, a lançar fumaça negra para o ar. Onde estaria Myra? Chamou por ela, uma, duas vezes; depois lá a viu, também dentro do rio, junto aos arbustos. Parecia estar bem, embora coberta de fuligem. Riu-se da triste figura dela, mas Myra estava muito séria. - Isto deve ter sido o pior plano de fuga jamais imaginado deste lado da Galáxia, - disse ela com um rosto sombriu. Depois riu-se também. - De qualquer das formas, obrigada... entre morrer numa cama de operações estéril ou num carro conduzido por um louco suicida, prefiro mil vezes a segunda alternativa. - Bem, ainda não estamos a salvo. Os helicópteros podem ter voltado para trás, mas eles não vão desistir, vão mandar jipes atrás, para fazerem um levantamento do terreno, - disse Paulo. Depois olhou para o horizonte. - Mas podem levar ainda algum tempo... vamos ter de improvisar. Há ali uma quinta. Vamos procurar ajuda... A quinta não era bem uma quinta, era mais um monte alentejano, e para mais, abandonado. A sorte começava a falhar-lhes. Myra resmungou: - Normalmente as minhas férias não são assim tão agitadas... abatida por militares, salva por um maluco, perseguida por helicópteros... - Cortesia do Ministério do Turismo de Portugal... bolas, isto está tudo deserto e abandonado! Não mora cá ninguém há séculos, - lamentou-se Paulo. - Não exageres, há um tractor quase novo na garagem, - disse Myra calmamente. - Um quê?! - exclamou Paulo, surpreendido. Voltou-se na direcção da jovem. Ela apontava para uma garagem, em muito mau estado, mas que de facto tinha lá um tractor laranja, podre de velho. - Ah, isso nunca funcionará, está avariado há milênios. - Tens alguma alternativa? - perguntou Myra com um sorriso. Agarrou nalgumas ferramentas e limpou-as a um pano sujo de óleo. Depois abriu a caixa do motor do tractor e começou a mexer no interior. - Não me vais dizer que sabes consertar tractores terrestres, - disse Paulo, incrédulo. - Pela Grande Galáxia! As vossas criancinhas não sabem consertar bicicletas? Nós damos motores de combustão interna no liceu, - disse ela, arrogantemente. Começou a mexer no interior do motor, tirou algumas peças, depois ficou a olhar para elas, pegou nuns arames e começou a introduzir tudo no interior. - Pronto. O motor não vai ficar aproveitável depois disto, mas pelo menos deve dar para chegar à cidade mais próxima... - Estás a brincar comigo, não estás? - disse Paulo. - Nem levaste cinco minutos... Mas nem terminou a frase; Myra fez girar a ignição, e com muito protesto, o tractor arrancou à terceira tentativa. Limpou as mãos, sujas de óleo até aos cotovelos. Depois deitou fora o trapo velho. --Vens ou vais ficar aí a olhar? - Todas as mulheres do teu planeta sabem consertar tractores velhos?! - Paulo estava estupefacto. - Em Andor, ninguém no seu perfeito juízo tocaria numa coisa barulhenta e mal-cheirosa destas, - disse ela laconicamente. - Algumas minhas amigas provavelmente deixariam de me falar só por ouvirem que eu tinha mexido nisto. Por outro lado, não temos alternativa, pois não? Paulo abanou a cabeça. Depois, resignado, sentou-se no tractor. Mas Myra afastou-o. - Nem penses, tu és maluco a conduzir. O detective encolheu os ombros. - Também, não é que seja preciso tirar carta de condução para uma coisa dessas... não anda a mais do que meia dúzia de quilómetros por hora, se tanto... Myra lançou-lhe um olhar frio. - Para tua informação, eu tenho carta de condução, está bem? - Tirada na Terra?! - perguntou Paulo. - Agência «Ases do Volante» de Alvalade, - disse ela e pôs o tractor em movimento. Com um sorriso, mais branda, acrescentou: - Eu disse-te que passei anos e anos na Terra, não te disse? Acho que se somar o tempo todo foram aí uns dez anos, talvez... - Como é possível que tenhas passado assim tanto tempo na Terra...? - Ora, passo todas as minhas férias cá... e faço parte da aristocracia andoriana, não preciso de trabalhar para viver, - acrescentou, à laia de explicação, como se a palavra lhe causasse repugnância. - Mas vinhas sempre naquela nave...? - balbuciou Paulo, cada vez mais espantado. - Como é que não te detectavam? 'Pera aí, para onde é que estás a ir? - Beja fica naquela direcção; ou melhor, a estação de combóio, - retorquiu ela simplesmente. - Bem pensado, - murmurou Paulo. Não tinha o menor sentido de orientação. - Como é que conheces isto tão bem? Myra lançou-lhe um olhar de desprezo e não foi preciso dizer mais nada. Paulo encolheu os ombros. - Ok, ok, já percebi... mas não respondeste à minha primeira pergunta. - Claro que não vinha sempre naquela nave, - disse Myra. - Ah. Então...? - Eu tenho três naves, - disse ela calmamente. Depois riu-se. - Oh, não fiques assim tão espantado! Sim, eu sei perfeitamente que sou uma menina mimada com um papá rico. Que queres? Eu já disse que não concordava com o sistema político de Andor. Que isso era uma das razões que me leva a escolher a Terra como destino turístico. Mas não quer dizer que seja totalmente idiota. Se o dinheiro e o poder do meu pai a me permitem certos... luxos, porque não hei-de tirar partido deles? - Estou a ver... - Paulo estava zonzo. - Mas a nave não era nunca detectada...? - Claro que não, tolinho! Senão como é que julgas que conseguíamos aterrar? Viste o que aconteceu quando fomos detectados desta vez? Tivemos azar, foi uma avaria, a porcaria do Lard esqueceu-se de verificar o sistema de camuflagem... eu bem lhe disse para fazer a revisão à nave, mas não, ele é mais teimoso do que eu... - Lard? Myra suspirou, e a sua voz não soou com tanta arrogância como anteriormente. - O meu namorado... ou era. E o melhor amigo dele... enfim, tu viste-los. Paulo permaneceu silencioso. O tractor avançou alguns quilómetros por estradas rurais, Myra escolhendo aquelas que tinham mais árvores. Ainda não se viam soldados nas colinas, mas não tardariam a aparecer; o velho tractor andava pouco mais depressa do que um homem numa bicicleta, se tanto. Iriam levar horas a chegar a algum lado... depois Paulo pensou que provavelmente a estação de caminhos de ferro estivesse fora da cidade - era o normal - e talvez ficasse para o lado de cá de Beja... era a única esperança, claro. Depois era preciso que passasse um combóio... mas aí teríam muito mais hipóteses. No pior dos casos, poderiam apanhar um táxi na estação que os levasse para Beja. E a partir daí seria muito, muito difícil que os apanhassem. Mas de momento ficou silencioso. Pensou na ironia da situação. Sim, claro, ele, Paulo, apenas pensava que era uma espécie de herói romântico, que salvara uma extraterrestre viva das garras manipuladoras do Exército e do Governo (para o qual, ainda por cima, estava a trabalhar como funcionário público). A prova de existência extraterrestre, mesmo à sua frente! A verdade, mais cedo ou mais tarde, haveria de vir ao de cima! Contudo, no fundo, estava a ser egoísta. Aquela extraterrestre não era absolutamente nada do que se pensaria dum representante de uma civilização mais avançada. Não era um astronauta, um cientista, um diplomata, um mensageiro da paz galáctica... Era uma jovem, humana, arrogante, convencida, filha mimada de pais ricos, que tinha vindo fazer turismo com o namorado e um amigo. Que coisa mais ridícula! Uma pessoa vem fazer férias ao Algarve e é abatido pela Força Aérea. Morre o namorado, morre o amigo; ela sobrevive, apenas para ser colocada numa cela para ser interrogada, depois talvez dissecada, e tudo isto abafado pelos militares. Foge com um detective da Judiciária que arrisca a carreira e a vida para a salvar. E ambos neste momento estão num tractor velho, sob o sol sempre abrasador do Alentejo, a fugir de soldados armados que a qualquer momento podiam emboscá-los... qual emboscada, quando viessem, seria para atirar a matar, sem sombra de dúvidas. Que cretinisse! - Desculpa? - perguntou Myra, e Paulo reparou que tinha falado em voz alta. Corou, mas por trás da lama e do pó não se notava. - Nada... estava a divagar... - disse, embaraçado. - Bem, divaga à vontade. A estação é já depois daquela colina, - disse ela, apontando. Paulo não via nada, mas não tinha a menor dúvida que assim fosse. O tractor subiu pacatamente o caminho rústico, monte acima. - Estava a pensar que a humanidade... quero dizer, os terrestres devem-te montes de desculpas... abaterem a tua nave, matarem os teus... amigos, - disse, engolindo em seco. Ela encolheu os ombros. - Lard era um palerma, não gostava muito dele... - Não disseste que era o teu namorado?! - espantou-se Paulo. Myra apenas disse: - Escolha de conveniência do meu pai, não minha... mas enfim, não merecia morrer, claro... a culpa foi toda minha, nunca devia ter confiado nele para fazer a revisão da nave! O pateta nunca tinha viajado para fora do sistema solar - isto é, do sistema de Andor, quero dizer. - Também chamam sistema solar ao vosso sistema? - perguntou Paulo, ansioso por mudar de assunto. Ela riu-se. - Andor quer dizer Terra na nossa língua, - explicou. - E a estrela que ilumina Andor chama-se Sol, claro. Ora, não fiques impressionado, é perfeitamente natural, praticamente todos os planetas humanos se chamam Terra e giram à volta de um Sol... - Portanto, há certas características comuns a toda a espécie humana que se espalhou pelas estrelas... - matutou Paulo, divagando. O calor apertava com violência. Desejava ter alguma água... - Obviamente que sim! Eu disse-te que a evolução foi paralela. - Mas como começou? - Sei lá como começou! Ninguém sabe isso, - disse Myra, afastando também o suor do rosto. Tirando as mãos do volante, prendeu o seu cabelo imundo atrás das costas. - É, então, um mistério que vocês também não sabem resolver? - perguntou Paulo, curioso. - Claro que não, já te disse que não sabemos tudo, não somos omniscientes. Nem sequer somos assim tão avançados como isso! Já te expliquei isso... - Mas a vossa... tua nave... atravessa o espaço, violando as leis Einsteinianas... isso é fabuloso, está acima das nossas capacidades tecnológicas... - Viola o caraças, - disse Myra calmamente. - Então como...? - Não faço a menor ideia, não sou engenheira. Tudo o que sei é pilotá-la, mais nada. - Mas o sistema de propulsão... que forma de energia utilizam? - Pastéis de nata, - afirmou Myra, muito séria. - Quê?! - Ela estava de novo a gozar com Paulo. - Ora, o que é que julgas que usamos? Fusão nuclear, claro. Até vocês usam fusão nuclear... ou usariam, se não estivessem tão dependentes dos cartéis petrolíferos e da indústria automóvel. - Tens um conhecimento verdadeiramente impressionante de tudo o que se passa na Terra, - espantou-se Paulo uma vez mais. O tractor tinha atingido o ponto alto da colina e empreendia a sua descida. - Bah, - minimizou Myra. - Eu sei ler jornais, sabias? E televisão, e rádio, e Internet, e sei lá que mais formas de noticiários vocês têm. Não é que sejam grandes segredos... - Mas... Myra... ok, fusão nuclear, faz sentido, claro... mas as vossas naves tinham poltronas, e casas de banho... - E depois? Os vossos aviões também os têm, - disse ela, como se eu fosse um provinciano que nunca tivesse voado. - Bem... mas os nossos aviões estão sempre sujeitos à gravidade do planeta Terra. - Ah, estou-te a perceber... sim, temos um gerador de gravidade a bordo. - Como é que isso funciona?! - Brincadeira de crianças. O que acontece quando duas ondas com a mesma polaridade e com a mesma direcção, mas com uma delas desfasada de 90 graus, se encontram? - Não sei... - Ignorante, - disse ela com desprezo. - Anulam-se mutuamente. Sabias disso? Paulo balbuciou que se lembrava vagamente de ter ouvido isso nas aulas de física. - Vocês usam isso para criar sistemas de isolamento acústico. O que temos é um gerador de gravitões que faz isso. Serve para criar gravidade artificial ou anti-gravidade, conforme quisermos. Nada de mais simples. Trivial, - acrescentou. - Mas não existem gravitões... - Ah sim? Muito me contas, - troçou ela. - Ainda há pouco dizias que não percebias nada de física! - E presumo que vocês dêem isso no liceu também? - Não, palerma. Vocês dão isso no liceu! Estudam as equações de Maxwell. Estudam as fórmulas da uniformização do campo eléctrico com o magnético. Ok, podes ter-te esquecido disso. - Depois pigarreou. - Eu também me esqueci disso. Simplesmente, em Andor e na Aliança, estudamos a uniformização para todas as forças físicas, eléctrica, magnética, forte, fraca, gravítica... é tudo a mesma coisa. E desde que tenhas a teoria, podes criar aplicações práticas. Correcto? Vidé o caso do vosso primeiro lançamento da bomba atómica... foi uma questão de demonstrar que era possível a fissão nuclear para produzirem uma aplicação prática - se bem que letal - da dita cuja. Em apenas anos. Maravilhoso, não é? Vocês estão a uma unha negra de descobrirem tudo aquilo que tu achas de inacreditável na nossa tecnologia, mas é tudo incrivelmente banal... - Assim como viagens no hiperespaço? - troçou Paulo, por sua vez. - Também é incrivelmente banal...? - Tudo o que precisas é de uma fonte de energia quase inesgotável, como a fusão nuclear, e acelerar um corpo até à velocidade que quiseres... - Mas depois a massa aumenta até se tornar infinita, à medida que te aproximas da velocidade da luz, - fez notar o detective, furiosamente procurando recordar-se das suas aulas de física. - Crias um campo gravítico que aumente de intensidade à medida que te aproximas da velocidade da luz, lógico. Quando chegas lá, tens teoricamente uma massa infinita, mas também um campo gravítico de força teoricamente infinita para suster essa massa. Crias uma singularidade no espaço-tempo Einsteiniano e podes deslocar-te para onde quiseres a velocidades teoricamente infinitas, pois o tempo é teoricamente nulo. O resto é mera engenharia para tornar esses princípios realizáveis de forma concreta. Oh, não me perguntes detalhes; chumbei várias vezes a Física. Só sei que estas coisas não são perfeitas. Na prática, nunca se atinge, de facto, a velocidade da luz, porque não se consegue acelerar até lá, tal como não se consegue criar um campo gravítico infinitamente forte. Logo, não se atinge o tempo zero; nem se atingem velocidades infinitas; conclusão: apenas se fica suficientemente perto dessa singularidade de forma a se viajar muito depressa pelo espaço, muito acima da velocidade da luz... medida por um observador externo, claro. Mas dá-se um salto no espaço-tempo; numa semana viajam-se uns 70 anos-luz, mais ou menos... repete-se o processo várias vezes até chegares ao sítio que pretendes. Com isso chegas facilmente à maior parte dos sistemas estelares mais próximos. Mesmo assim, são uns bons vinte e tal anos para atravessar a Galáxia de ponta a ponta... e nem pensar em chegar a Andrómeda, fica longe demais. Seriam dezenas de milênios para lá chegar. - Isso é verdadeiramente fascinante... mas as comunicações entre essa Aliança levam anos e anos até chegar a todos os planetas da Galáxia... - Paulo via as estrelas a girarem em torno dos seus olhos. Mas na realidade era apenas o Sol que o fazia delirar com o calor... - Nah, temos sistemas de transmissão instantânea de informação, - disse Myra simplesmente. - Que usam taquiões...? - arriscou Paulo, recordando-se de uma discussão com Duarte Nunes dois dias antes, no «Trapos». - Nunca conseguimos provar a sua existência, excepto matematicamente. Não, algo de mais simples, e que vocês também conhecem. Os vossos cientistas desenvolveram aqui há tempos um sistema que permitia literalmente o teletransporte de fotões, e que julgam ser possível de fazer também com átomos simples. Nós nunca conseguimos teletransportar átomos - tudo o que tenha massa aparentemente não funciona - mas conseguimos fazer com que fotões separados a distâncias enormes adquiram as mesmas características. Vocês fizeram isso, em laboratório; nós fazemos à escala galáctica. É uma propriedade que vocês conhecem, mas estão mais entusiasmados com a noção do teletransporte; nós julgamos bem mais importante a comunicação instantânea. Não me perguntes como funciona, ok? Também não sei, mas sei que funciona bem, com fotões. Não funciona com átomos, porque têm massa... mesmo metendo-os em campos gravíticos fortíssimos, não vamos muito longe. Mas sabe-se lá, talvez um dia também consigamos fazer teletransporte de matéria, não sei, - explicou Myra demoradamente. - Estás sempre a dizer que não sabes nada, mas tens explicação para tudo, - fez notar Paulo. - Sabes como funciona um telefone celular? Um automóvel? Um computador? Não, vejo que não, mas sabes explicar os princípios básicos por trás de cada uma dessas invenções, que seriam consideradas magia no vosso século dezanove... mas podias explicar a uma pessoa culta do século dezanove como é que essas coisas funcionam, mesmo que não tivesses conhecimentos de física suficientes para construires um telefone ou um chip de silício... E contra esse argumento Paulo não tinha resposta.
5. Myra apontou para a linha dupla de ferro que brilhava ao sol escaldante, percorreu-a pelos gentis montes, entre a vegetação escassa dos baldios, até a um edifício branco. - Bom, o plano brilhante de ir até à estação foi por água abaixo, - anunciou ela, com muita calma. Paulo observou a situação. Os militares não eram estúpidos; em vez de fazerem uma busca pelos campos adentro, tinham tomado os pontos-chave que seriam mais óbvios como ponto de fuga. E depois iam percorrer os campos. Junto à estação estava estacionada uma chaimite e vários jipes com metralhadoras montadas. De alguns camiões militares que chegavam pela estrada saíram vários pelotões armados de eternas G3; começavam a dispersar, a formar uma linha bastante comprida, e a avançar calmamente ao longo da suave colina. - Merda! - exclamou Paulo, furioso e amedontrado ao mesmo tempo. - Os tipos não são parvos nenhuns... provavelmente também cortaram as estradas. Ou até as entradas em Beja... e agora, pacientemente, vão explorar a zona toda... daqui a pouco mandam uns helicópteros, o Alentejo nesta zona é plano, será fácil de nos encontrar... estamos perdidos! Que burrice, eu devia saber que isto não funcionava... os militares podem ser muito incompetentes, mas não são totalmente incompetentes. - Em desespero, deixou pender a cabeça e suspirou. O calor apertava, estava a ficar com muita sede... Myra não disse nada. Ficou a observar os soldados que se aproximavam. Depois continuou a marcha do tractor, na direcção da estação. - Que estás a fazer? - perguntou Paulo, reparando no que ela estava a fazer. Mas Myra prosseguiu a sua viagem. - Pára! - exclamou Paulo então. - Para onde pensas que estás a ir? - Agora é a tua vez de confiares em mim, - disse ela pacatamente, virando a cabeça e olhando para Paulo, os seus olhos azuis frios, penetrantes. - Eu confiei em ti para me tirares do quartel, não confiei? Por momentos a máscara da menina mimada caíu, revelando algo de diferente. Paulo estava admirado. Myra podia, por vezes, hesitar, mas não parecia ter medo de nada. Menos do que ele, sem dúvidas; e ele era supostamente um detective treinado... bem... ou quase. A jovem prosseguiu a marcha no sentido do grupo dos soldados mais próximos. Estes mandaram-nos parar, o que Myra fez com alguma relutância, como se tivesse receio de que o tractor não voltasse a pegar. Paulo estava estupefacto; que é que ela ia fazer? Render-se? Mas não fez nada disso. Aproximou-se apenas do sargento do pelotão, e disse-lhe com firmeza de que ia para a estação de combóio. Mais nada. O sargento pareceu hesitar. Depois acenou afirmativamente, fez um gesto ao resto do pelotão, e continuaram a sua busca. Myra voltou calmamente para junto do tractor, e, com um safanão, voltou a colocar o motor em andamento. O detective não podia acreditar no que tinha acabado de presenciar. Os soldados tinham-na ignorado completamente! - Como raio é que fizeste isso!? O que é que lhes disseste? Ela encolheu os ombros. - Hipnotizei-os, - disse simplesmente, como se fosse a coisa mais natural deste mundo. - Hipno... o quê, assim sem mais nem menos? Mas... como sabias que ia resultar? E como conseguiste hipnotizá-los assim tão depressa? - Julgas que não passei por outras más situações na Terra? - troçou ela, um pouco do seu bom humor quebrando a fachada séria. - O hipnotismo funciona muito bem nestas situações... mas aviso-te que não funciona com toda a gente. E é preciso apanhar as pessoas de surpresa, mesmo as que sejam vulneráveis ao hipnotismo, conseguem resistir se souberem o que lhes está a acontecer. - Hipnotismo, - disse Paulo, fascinado. - Podias ter-me dito antes, tinha facilitado imenso as coisas na base... Ela encolheu os ombros. - Disseste para eu ficar calada, que tinhas um plano... eu confiei em ti e obedeci. - Touché, - admitiu Paulo, resignado com a situação. - Bem, isto talvez funcione... mas há dezenas ou centenas de militares na estação, não os consegues hipnotizar a todos. - Basta apenas os graduados, - explicou ela. - Os restantes seguem as ordens... O detective abanou a cabeça, encolheu os ombros. - Tudo bem, força nisso... não temos mesmo nenhum outra alternativa. Ou funciona, ou estamos arrumados. Mas o facto é que funcionou. Paulo teve a distinta sensação de estar invisível. Sempre que algum dos militares de aproximava para os interrogar, afastava-se perfeitamente convencido de que eles não eram as pessoas que estavam à procura e deixavam-nos em paz, tal como a um grupo de pessoas que aguardava o combóio. Limparam-se o melhor que puderam nos sanitários públicos (com Paulo quase em pânico de que entrasse algum militar, com Myra ausente - mas isso felizmente não aconteceu). Depois compraram dois bilhetes para Lisboa e aguardaram na estação à sombra, bebendo água que se vendia num pequeno anexo. - Podias ter também hipnotizado a mulherzinha do bar para nos oferecer a água, - comentou Paulo, com um sorriso malicioso. Myra lançou-lhe um olhar furioso. - Eu sou uma pessoa honesta, Paulo. Isso seria perfeitamente imoral. Em questões de vida ou de morte... - Estava a brincar, - acrescentou Paulo rapidamente. Para detective da Polícia Judiciária, o seu comportamento estava a ser perfeitamente escandaloso. Rapto, mentiras, falsificações, destruição de propriedade alheia, fuga das autoridades, roubo de tractores, hipnotismo... já dariam uns anitos na cadeia, pensou Paulo, pensativo. Que iria Duarte Nunes pensar de tudo isto? Pior: o que iria o Velho dizer? Subitamente sentiu-se tremendamente inseguro em relação a toda a situação. Não seria assim tão difícil apanharem-no, se quisessem. E a jovem extraterrestre não podia hipnotizar todo o mundo. Mais cedo ou mais tarde seria apanhado em flagrante. Ou não? - Durante quanto tempo é que duram os efeitos do hipnotismo? - perguntou a Myra. - Tempo...? Bem, é instantâneo, diria eu, - explicou ela, não compreendendo aonde Paulo queira chegar. Este explicou: - Alguém que «pense» que não nos encontrou, durante quanto tempo é que continuará a pensar isso? - Acho que para sempre... para todos os efeitos, apenas lhes coloquei a sugestão hipnótica de que não éramos as pessoas que eles procuravam. Isso tem efeitos permanentes. Eles não se vão lembrar mais tarde das nossas caras, se é isso que te preocupa. - O que me preocupa é saber quando seremos apanhados em flagrante, - murmurou Paulo, descontente. Myra, surpreendentemente, sorriu. Passou a mão pelo seu longo cabelo. - Ora, não te procupes demasiado com isso! Eu nunca fui apanhada em flagrante, se queres mesmo saber. E passei por situações muito complicadas... claro que esta talvez tenha sido a mais complicada de todas, mas enfim... - Há imensas pessoas que me podem identificar. A dona da pensão onde passei a noite, a empresa a quem aluguei o carro, os militares na base... é apenas uma questão de tempo, - afirmou Paulo. Tirou um lenço de papel, enxugou as gotículas de suor que lhe surgiam na fronte, tanto devido ao calor como devido à insegurança que sentia. - Conhecem o meu rosto, podem verificar nos arquivos da Judiciária... também devem ter uma fotografia tua, podem fazê-la circular na televisão, nos jornais... Myra apenas sorriu. - Pois podem. - Não pareces muito preocupada, - fez notar Paulo, cuja imaginação prodigiosa lhe indicava mil e uma maneiras de serem apanhados em menos de 24 horas. Ela encolheu os ombros. - A Polícia Judiciária costuma apanhar toda a gente, temos quase 100% de sucessos na captura de criminosos, - adiantou Paulo. - Claro que depois os tribunais levam eternidades a efectuar os julgamentos, e não há espaço nas cadeias para tanta gente, mas... o facto de te quererem dissecar ou pior é um factor atenuante... teria quanto muito uma pena suspensa, mas não poderia continuar a trabalhar na Polícia... argh. - Sacudiu a cabeça. - Como podes ficar assim tão calma?! - exclamou, quase furioso pela indiferença de Myra. - Achas mesmo que vão fazer uma caça ao homem assim tão intensa? - perguntou ela, de facto com enorme calma. - Podem fazê-lo, têm meios para isso... - Pensa um bocadinho no assunto. Jornais e televisão a apresentarem uma extraterrestre em fuga? «Estimados concidadãos, se virem esta pessoa, por favor contactem a base militar mais próxima; trata-se de uma perigosa extraterrestre que escapou e que se encontra à solta. Dão-se alvíssaras por qualquer informação que conduza à sua captura». - Bem, ok, estou a exagerar, claro que isso não seria feito dessa forma, seria apenas noticiado um «criminoso» em fuga, mais nada, - disse Paulo. - E podem fazê-lo mais discretamente, enviando as nossas fotografias para todas as esquadras e postos da GNR do país. E eventualmente postos de correio, agências bancárias... nunca seria preciso referir que se tratava de uma extraterrestre e de um agente da Polícia Judiciária... - E depois? O que acontecia quando nos capturassem? - perguntou Myra, pestanejando inocentemente. - Cadeia para mim, a sala de operações para ti, - resmungou Paulo. - Cadeia para ti? Não me parece. Estás a ver o comandante da base de Beja a admitir, mesmo que em privado, que tinha deixado escapar uma extraterrestre...?Depois dos alaridos, dos interrogatórios, de tanta gente que passou pela dita base e que viu a segurança da mesma? E o que fariam as potências estrangeiras se soubessem do que se tinha passado? Nunca mais confiariam em Portugal para uma operação importante... pois se com um ardil tão básico tinha sido possível raptar uma extraterrestre de uma base de alta segurança, que confiança seria possível de ter num país como o vosso? - Isso é muito bonito, mas podiam fazer-te regressar à base de Beja sem ninguém saber que tinhas saído de lá, - disse Paulo. - Montam uma investigação secretíssima, eventualmente apenas militar, e fazem com que ninguém, mas mesmo ninguém, saiba o que se passou realmente. - Fez um gesto largo, abrangendo os militares na estação de caminhos de ferro. - Tudo isto pode ser ocultado sob o pretexto de um exercício militar; os graduados apenas precisam de saber que têm de prender uma pessoa como objectivo do exercício. Se calhar nem estão a levar a operação muito a sério. Capturam-nos, devolvem-nos à base, e pronto. Ninguém precisa de saber mais nada. - Tudo isso é muito bonito, Paulo, mas esqueces-te de que só têm até depois de amanhã para resolverem o assunto, - disse ela calmamente, bebendo mais um golo de água da garrafa. - Como assim? - Ora, a operação... vão imediatamente reparar que falta uma pessoa, - disse Myra. - Se não nos capturarem nas próximas 48 horas, vão precisar de uma desculpa muito convincente para explicar a minha ausência. - Hum... - fez Paulo, pensativo. Depois lembrou-se de um pormenor: - Myra, no relatório a que o Duarte Nunes teve acesso - o meu superior, o psicólogo da nossa unidade - nunca mencionaram a tua sobrevivência. Myra acenou afirmativamente. - Então o caso muda de figura... os portugueses não querem colaborar com os vossos aliados. Vão apenas apresentar os corpos dos... meus amigos, - disse, hesitando. - E a nave, claro. Portanto, existe um número reduzidíssimo de pessoas que sabem que eu estou viva. - E vão fazer tudo para te recuperarem. - Mas têm de ser inifinitamente mais subtis, e agir no maior do secretismo, - disse ela. - Conspirações dentro de conspirações... - Riu-se de súbito. - Pior do que na Aliança! - Um grupo português de acesso incrivelmente restrito sabe que estás viva. Usam a própria descoberta da nave e dos seus tripulantes mortos como uma enorme fachada para esconder a verdade: que existe um tripulante vivo. Este grupo sabe que escapaste. Mais ninguém sabe da tua existência. Mas eles não podem ter recursos infinitos. Não podem recorrer aos jornais, à televisão, nem às autoridades. Apenas podem recorrer a eles próprios. Hm. Vai-lhes dificultar enormemente a sua missão. - Além disso, eles fizeram explodir o teu carro, e não nos encontraram, - realçou Myra. - Isso não quer dizer nada, vão saber que os corpos não estavam lá. Sabem que escapámos, ilesos. Não sabem como escapámos. Mas sabem que estamos vivos. - Mas se o grupo é assim tão restrito, não vão poder arranjar outro pretexto de manobra militar de busca de fugitivos, - notou Myra, e Paulo concordou com ela. - Vão ter de agir isoladamente, recolhendo pistas aqui e ali... - Mesmo que nos encontrem, não te podem entregar à justiça. - Podem forjar dados... - Apenas por vingança? Não me parece, arriscam-se a que tenhas um bom advogado e que exponha a falsidade desses dados, - raciocionou a jovem extraterrestre. - Não acredito que eles arrisquem que tu faças chantagem com eles, expondo a verdade. - Mas ninguém acreditaria na verdade! - exclamou Paulo. - Mesmo Duarte Nunes não estava muito convencido, e achou que era melhor eu esquecer tudo, pois algo de anormal se passava no interior daquela base. - Enquanto estiver viva, sou prova da verdade, - explicou Myra. O sol atingira o ponto mais alto do céu e o calor continuava insuportável. Não soprava a menor brisa; gastaram o resto da água. À medida que se aproximava a hora de chegada do combóio, surgiam mais pessoas na plataforma da estação. Muitos militares aproximavam-se dos viajantes que entretanto tinham chegado, mas nenhum voltou a interrogar Paulo e Myra. Para já, continuavam a salvo. A actividade militar continuava, pelas colinas viam-se jipes e soldados a pé. De vez em quando um helicóptero sobrevoava a estação. - Por falar nisso, como é que podes provar que não nasceste na Terra? És humana, disseste-me que és perfeitamente indistinguível de qualquer terreste, mesmo a nível do DNA... - Oh, posso contar imensas coisas sobre a Aliança, - disse ela, despreocupadamente. - Acredita, se for mesmo preciso provar que não nasci na Terra, tenho meios para o fazer. - Tais como...? - perguntou Paulo, interessado. Ela fitou-o nos olhos. - Bem... podem remover o transdutor cirurgicamente. - O que é o transdutor? - Um dispositivo que nos é implantado à nascença, serve para uma série de coisas... identificação automática perante todo o tipo de dispositivos... telecomunicações... contém a nossa base de dados pessoal, etc. - Voltou as palmas das mãos para mim. - Está na palma da mão e não é revelado pelos vossos raios X pois têm exactamente a mesma densidade da carne humana. E é minúsculo. Temos dois, um em cada mão, caso algum se avarie, o que é pouco provável... podem remover isso e verificar que não foi produzido na Terra. Ademais, ao fazerem a autópsia dos meus amigos vão provavelmente encontrar isso, sem saberem o que é ou para que serve. Se for preciso provar sem sombra de dúvida a minha história, tenho sempre esta maneira de o fazer. Simples, não é? - Confesso que nada disso me teria alguma vez passado pela cabeça. E eles quando fizerem a autópsia, sabem que tu tens esse... implante. E que tens maneira de provares a tua história. Logo, não me podem prender assim nem mais nem menos, porque sabem que posso fazer chantagem contigo. Hm. Isto, claro, se não nos separarmos... se eles te eliminarem, não tenho provas nenhumas para apresentar. - Ora, meu caro! Não és tu um agente da autoridade? Escreves um relatório, na presença de testemunhas, e assinado por mim, com provas irrefutáveis. Guardas isso num sítio seguro, com várias cópias redundantes, e instruções precisas para a informação ser revelada à imprensa se alguma coisa nos acontecer. Até parece que nunca viste nenhum filme policial! - ironizou ela. E tinha razão, de facto. - Eles provavelmente a esta hora sabem quem eu sou e o que vamos fazer, - disse Paulo, pensativo. - Mas não existe, de facto, melhor maneira de assegurar que possam fazer alguma coisa para evitar isso. Sabem que eu não vou usar essa informação de livre vontade, mas que o poderei fazer se for ameaçado... portanto, vão ter de negociar. - Ou ignorar tudo, - disse Myra, esperançosa. - Repara: tu de certeza que não vais divulgar essa informação, pelo menos se quiseres manter o teu lugar numa força da autoridade, certo? Julgo que deves estar sob juramento para manter confidenciais certos assuntos de Estado... - Sim, mas eles não sabem porque é que te raptei, posso ter querido vender a informação a outro país, por exemplo... - notou Paulo. - Eles não sabem isso. Por isso vão precisar de ter a certeza absoluta das nossas intenções. Vão ter de nos descobrir e negociar. Não se podem arriscar a destruir-nos, a não ser agora, nesta fase em que claramente não tivemos maneira nenhuma de guardar a informação em local seguro... - Portanto, têm de ser muito rápidos se nos quiserem apanhar, certo? Depois disso será tarde demais. Por outro lado, nós teremos de ser o mais rápidos possíveis a recolher essa informação. - O seu rosto iluminou-se com um sorriso. - Bem, creio que temos um ponto de partida para isso. Podemos usar o satélite... - Qual satélite? - perguntou Paulo, perplexo. - De que estás a falar? - Antes de aterrarmos, lançamos sempre um satélite em órbita da Terra, - explicou Myra. - Não percebo. Para quê? - Oh, montes de coisas... comunicações, principalmente. Não é um satélite geoestacionário, percorre toda a Terra. A ideia é podermos comunicar entre nós via transdutores caso nos separemos, para podermos combinar coisas, como o ponto de encontro... uma vez enganei-me nas datas de partida de um avião das Antilhas, e não havia maneira de avisar o resto do grupo que não conseguiria chegar a tempo ao local onde tínhamos escondido a nave para a viagem de regresso... usámos o satélite para combinarmos uma nova data. É útil. No regresso, levamos o satélite connosco. Oh, é perfeitamente indetectável com a vossa tecnologia. Mas posso enviar para lá um relatório bastante completo. Além do mais, com uma modificação apropriada de um emissor de laser, pode-se arranjar maneira do satélite responder, mesmo que a informação seja inintelegível... ou posso fornecer a órbita precisa do satélite, se for caso disso. Pode-te servir também como prova da nossa existência. Se enviarem um Space Shuttle para essa órbita, podem recolher o satélite, e verificar que não foi desenvolvido com tecnologia terrestre... é um excelente sítio para guardar informação. Posso, inclusivé, programar o satélite para emitir uma gravação de vídeo a determinadas horas para certas posições... mesmo que, por exemplo, apanhem todas as cópias de segurança que tenhas feito sobre a minha história, pode-se arranjar maneira do satélite emitir tudo para as agências noticiosas, a uma dada altura. Hmmmm... quando estivermos no combóio, vou programar o satélite para fazer essas emissões automaticamente se eu não estiver viva; é fácil, basta o satélite reparar que não estou a emitir um sinal permanentemente. O transdutor é alimentado apenas enquanto eu estiver viva, funciona com energia orgânica retirada do meu corpo... se me matarem, o satélite emitirá automaticamente. Boa ideia, não achas? - Genial, - balbuciou Paulo, perfeitamente espantado. Nisto ouviu-se um apito à distância, e pouco depois o resfolegar de uma máquina diesel-eléctrica que se aproximava. - Aí vem o combóio... Entraram no velho conjunto de carruagens metalizadas. Paulo escolheu uma cabine vazia e fechou a porta; o combóio estava meio vazio. - Bem, vamos seguir as tuas sugestões de imediato... esse teu dispositivo maravilhoso pode gravar conversações? -Pode, claro... e tirar hologramas, se for preciso. Não terão grande qualidade, mas servirão por agora. - Pareceu concentrar-se por uns momentos. - A próxima passagem do satélite por aqui será dentro de quatro horas. Mas podemos ir fazendo a gravação, o transdutor tem memória que chegue para isso. - Há maneira de replicar essa informação? Quero dizer, ligar isso a um computador dos nossos ou coisa parecida...? - inquiriu. Ela sorriu tristemente. - São demasiado primitivos... mas posso dar umas indicações do modo de funcionamento do sistema. O satélite, contudo, pode emitir sinais de rádio em frequências utilizáveis por vocês. Pode-se transferir a informação para lá, e depois comandar o satélite para replicar isso em sinais de rádio. Se tiveres uma antena unidireccional que se possa apontar para uma posição fixa no espaço, deve ser possível captar a transmissão codificada, e depois processá-la com um dos vossos computadores. - Não será demasiado arriscado? Os militares podem descobrir assim a origem do satélite e abatê-lo... - É pouco provável; a transmissão pode ser feita em menos de um segundo, e será só captável numa área reduzidíssima. - Bem, não temos outro remédio então... começa a gravar. Myra assim fez. Passou as horas da viagem para Lisboa a explicar quem era, como tinha vindo parar à Terra, como tinha tido uma avaria na sua nave, como tinha sido abatida pela Força Aérea Portuguesa e posteriormente capturada. Depois explicou o funcionamento do satélite e do transdutor; forneceu dados precisos sobre a localização do satélite e informou que, se o transdutor fosse desactivado, o satélite passaria a transmitir a informação toda em ondas de rádio e de televisão facilmente captáveis por quem estivesse na Terra. Acrescentou tudo aquilo que já tinha contado ao jovem detective - quem ela era, o que era a Aliança, os princípios básicos do funcionamento da sua nave e das comunicações instantâneas (Paulo insistira nesses aspectos), assim como mais algumas coisas de que se recordou na altura. Por exemplo, embora afirmasse que lhe podiam fazer uma análise ao DNA, comprovando a sua humanidade, se lhe fizessem uma análise cuidadosa ao sangue e à urina detectariam aqui e ali alguns elementos estranhos ao corpo humano. Na realidade, encontrariam provavelmente bastantes grupos de retrovírus activos no seu corpo, sem qualquer relação com os vírus conhecidos na Terra: eram sistemas reguladores, criados em laboratório, que faziam uma série de verificações à integridade biológica e química do seu corpo. Isso era outra prova da sua nascença fora do planeta Terra, mesmo que alguém lhe removesse o transdutor... A jovem terminou aí a sua gravação, mas Paulo estava a fervilhar de questões. - Esse relato pode ser, para já, algo que sirva para ficarmos com uma ideia geral, caso formos apanhados. Mas temos de conseguir chegar à SCE. O Duarte Nunes vai querer bombardear-te com questões e mais questões! Por exemplo, essa noção que o teu corpo na realidade encerra dois subsistemas de controlo imunológico, um natural e outro inteiramente artificial, é espantosa... Myra sorriu. - Ah, como os humanos são curiosos, não são? - Suspirou, apoiou a cabeça nas mãos, fazendo um olhar resignado. - Tu, no fundo, não és muito diferente dos militares da base... - Acho isso tremendamente injusto, - protestou Paulo laconicamente. - O meu objectivo é recolher a verdade, proteger a única testemunha dessa verdade, e não dissecar-te ou coisa pior... - Eles diziam exactamente o mesmo, - acusou Myra severamente, mantendo a sua posição. Paulo ficou sem resposta. Felizmente o combóio terminava a sua viagem muito em breve; o silêncio manteve-se durante algum tempo até se tornar opressivo. A jovem extraterrestre «cravou-lhe» um cigarro, para grande espanto de Paulo, que acabou por perguntar: - Não me vais dizer que se fuma noutros planetas?!? Ela riu-se, e a atmosfera pareceu desvanecer-se. - Cada planeta tem os seus vícios! Não, não julgo que se fume noutro planeta que não a Terra, e mesmo na Terra, é um vício que está a desaparecer... estão a substitui-lo por drogas intoxicantes e psicotrópicas, que é no fundo o que existe por todo o lado... até o vinho, as cervejas, os licores naturais: em Andor temos descrições da existência de bebidas naturais à base de fermentação de diversos alimentos naturais, mas, a pouco e pouco, à medida que o consumo de alimentos naturais diminuiu, essas bebidas todas desapareceram da nossa culinária... - Levou o cigarro aos lábios, expelindo o fumo, pensativamente. Depois acrescentou: - Vocês estão numa fase transitória, mesmo na fronteira, sabias? Por um lado, estão a criar uma série de alimentos e medicamentos artificiais, mas os que são naturais ainda não são demasiado caros... mas é um equilíbrio precário. Os teus pais provavelmente viveram numa geração em que se começou a usar roupa feita de materiais totalmente artificiais porque um fato ou um vestido de nylon era mais barato do que um de seda... agora a situação inverteu-se, temporariamente. Tal como se voltou a apreciar o mel, em detrimento dos adoçantes sintéticos, ou as pessoas desistiram de alimentos inteiramente à base de soja, e, em vez disso, passaram a comer carne de outros animais para além dos tradicionais... subtilezas... o tabaco e a cannabis como substâncias viciantes naturais estão a perder terreno para as drogas psicotrópicas, mas em compensação, assiste-se a um aumento do consumo de bebidas alcoólicas, com recurso a processos de fabrico tradicionais... Paulo meditou naquelas palavras. - Tu és uma grande observadora da nossa sociedade, - fez notar ele, passado um pouco, mas havia algo que lhe estava a perturbar a linha de raciocínio. Ela riu-se, o fumo do cigarro traçando runas obscuras no ar. - Os turistas têm uma certa tendência para serem bons observadores, sabias? - Mas falas de coisas que aconteceram antes de teres nascido, - comentou Paulo. Myra encolheu os ombros. - Estudei muito o vosso planeta, Paulo. - Acho que o estudaste bem demais, - notou o detective, franzindo um sobrolho. - Não me digas que não acreditas em mim e em tudo o que viste até agora... - Myra pareceu divertida. - Não... estava a pensar como é conveniente saberes tanto da Terra, mas tão pouco do teu planeta natal, sob o pretexto de seres «apenas» uma turista, - concluiu Paulo, pensativo. - Que queres que te diga? Que queres que conte? Os nomes dos políticos andorianos? A idade do nosso embaixador na Aliança? As cores da Armada Imperial? A genealogia de Sua Majestade Imperial, Kasmur Toldor? Os nomes das ruas em Sandor, a nossa capital planetária? - perguntou ela. - Não, isso são trivialidades, - fez notar Paulo. - Repara que o que tu contas da Terra é muito mais denso. - Sim...? - Tal como o pormenor que mencionaste que estamos numa fase em que estamos a largar os produtos sintéticos, dando de novo valor aos produtos naturais. Isso já requer bastante observação dos costumes da Terra, - explicou ele. - Myra, sou um detective de profissão. - Corou ligeiramente e pigarreou. - Posso não ter grande experiência, mas tenho um treino básico que requer justamente esse tipo de observação e capacidade de raciocínio... Ela riu-se. - Estás a recrutar-me para a tua polícia? Paulo também sorriu. - Não, claro que não... estava a procurar recordar-me da tua profissão, no teu planeta natal... Andor? Nunca disseste o que fazias em Andor. - Semicerrou os olhos. - Segundo me recordo, descreves-te a ti própria como «uma menina rica mimada a fazer turismo», mas isso não descreve a tua profissão, apenas a tua classe social e a tua ocupação presente... Myra levou calmamente o cigarro aos lábios. Depois apagou-o, enquanto soprava lentamente o fumo. Não respondeu de imediato. Depois explicou: - Em Andor, entre os meus... pares, não é delicado mencionar a profissão que temos. - Que estranho! - observou Paulo. - Mas porquê? - Porque somos aristocratas, e não deveríamos precisar de trabalhar para viver, - prosseguiu Myra, levando a mão aos cabelos, tornando-os mais soltos. Depois sorriu. - Sim, somos snobs, fúteis, superficiais. Mas no meu meio deixa-se o trabalho para quem precisa dele; nós vivemos dos rendimentos... - Por isso a tua relutância em falares na tua profissão, - comentou Paulo, acenando afirmativamente. - Estou a ver. Mas tens uma cultura impressionante, és inteligente... - E muito bonita, -acrescentou Myra, pestanejando sensualmente os olhos. Paulo engasgou-se. A jovem extraterrestre desatou a rir-se. - Além de convencida, arrogante, egoísta e totalmente insuportável! - disse ela. - Agora a sério... obviamente que não exerço a minha profissão, isso seria escandaloso, mas estudei sociologia e história galáctica. Relações entre seres humanos. Na minha família, dá-se bastante importância a esse tipo de estudos; somos uma família rica, manipulativa, dona de vastas propriedades em Andor, mas também até de alguns outros planetas inteirinhos... cultivamos o dom da oratória, do raciocínio lógico, enfim, de todas as características que possam vir a ser úteis para os negócios da nossa família. - Sorriu. - Daí ter estudado sociologia... sempre era mais interessante do que estudar ciências políticas, ou gestão, ou finanças, blargh! - Esperam de ti que tu venhas a desempenhar um papel importante na tua família? Como negociante, mediadora...? Ela encolheu os ombros. - A minha família é enorme, Paulo. Estende-se pelas vastidões do espaço. Talvez a palavra clã seja mais apropriada para a descrever. Somos todos membros da aristocracia, ou da nobreza, como quiseres. Houve imperadores andorianos na nossa família; ainda somos todos primos directos do actual imperador, Kasmur Toldor, embora a Casa Toldor não seja nossa aliada... mas dentro da nossa Casa, a Casa Naldur, existem ramos mais ricos e outros menos ricos. Todos temos dinheiro e posição suficiente para não trabalhar, claro; mas outros ramos administram directamente planetas inteiros e toda a sua população... pessoalmente, venho de um dos ramos mais pobres, mas gostamos de fazer ver que descendemos directamente do ramo original da nossa Casa... o imperador e o meu pai têm dois tios comuns. Isso faz com que nos sentamos muito importantes, apesar das propriedades do meu pai serem minúsculas e darem para pouco mais do que sustentar os nossos gostos caros... tenho três irmãos e duas irmãs, sou a segunda mais velha, e é provável que um dia venha a administrar parte das propriedades do meu pai. Mas enquanto isso não acontece quero divertir-me! O resto da minha vida vai ser suficientemente monótona... Paulo ficou a meditar sobre o assunto, ele próprio vindo de boas famílias de Lisboa. Por momentos pensou em falar no assunto, mas acabou por se conter. Não era boa ideia trocar pormenores assim tão pessoais com uma pessoa que não conhecia... embora Myra sem dúvidas que falava sobre tudo o que lhe passava pela cabeça, e não escondia o seu orgulho e a sua vaidade. Fora com bastante emoção que lhe explicara as relações da sua família; Paulo duvidava que conseguisse falar com o mesmo entusiasmo da família Vasconcelos. Suspirou. O combóio começava a perder velocidade, balançando menos nas curvas, e uma voz anunciou que em breve se entraria em Lisboa, agradecendo os passageiros pela preferência da escolha da companhia. Paulo fez um sorriso azedo.
6. Ainda não estavam a salvo. A Gare do Oriente estava cheia de polícia e de militares. Fazia sentido: quem viesse de combóio de Beja, tinha de parar ali. E desta vez as coisas estavam mais complicadas, pois aparentemente estavam a revistar as pessoas uma por uma, à saída do combóio. Paulo explicou isto rapidamente a Myra, enquanto os restantes passageiros saíam. - Vais ter de os hipnotizar de novo, - sugeriu Paulo. - Eles estão a revistar as pessoas... quantos militares são? - perguntou Myra. Paulo observou discretamente a plataforma. - São vários... grupos de dois, em cada porta da carruagem. Myra murmurou algo de incompreensível, mas apenas franziu as sobrancelhas, concentrando-se no inevitável. Seguiram os restantes passageiros ao longo da carruagem; apearam-se e Myra apenas disse a um dos militares: - Não somos quem procuram. Mais uma vez Paulo se espantou com a simplicidade e a facilidade da sugestão hipnótica... os miltares deixaram-nos passar, e continuaram o seu trabalho com os passageiros seguintes. Mas haviam muitos militares, demasiados; agentes da polícia, fardados e até à paisana (com o tempo descobre-se com imensa facilidade os agentes à paisana, reflectiu Paulo). - São demais, - disse Myra. A cada momento, pares de olhos pousavam sobre o seu corpo, no seu rosto; depois os olhos passavam para Paulo. Os militares faziam gestos uns aos outros, aproximavam-se; Myra hipnotizava-os subtilmente e afastavam-se de novo; até encontrarem um novo grupo de militares, repetindo-se a situação. Os restantes passageiros agora desconfiavam activamente de Paulo e de Myra; achavam estranho porque é que os militares se aproximavam deles com tanta frequência, para depois se afastarem. A dada altura alguém berrou: - Estão ali, são aqueles! - e o caos irrompeu pelas plataformas da Gare. Tudo se acelerou de repente. Num microssegundo, Paulo tinha reagido, agarrou no pulso de Myra e desatou a correr, antes que a multidão os impedisse. Os militares perseguiram-nos de imediatos; polícias começaram a barrar os acessos às escadas rolantes, aos elevadores. Mas Paulo tinha-lhes algum avanço; dando encontrões a torto e a direito, avançava o mais depressa que conseguia no sentido da saída. Mas a escada rolante estava já barrada. - Merda, - praguejou Myra, o primeiro palavrão que Paulo ouvira dos seus lábios. Mas Paulo estava demasiado preocupado em encontrar uma saída. A multidão tornava-se numa correnteza que era absorvida por barragens humanas. A Gare do Oriente estava a ficar selada. Todas as saídas ocupadas. Os militares avançavam, afastavam a multidão com tanta perícia como Paulo, avançando sempre. Fugir era impossível. O olhar de Paulo dardejava incessantemente de saída em saída. Todas bloqueadas. Nenhuma saída. Nenhuma saída. Nenhuma saída... - Merda, merda, merda, - continuou Myra. Mas de súbito parou e agarrou Paulo por um braço. - Vou-me arrepender disto, mas... ok, agarra-te a mim, rápido! - Quê? - fez Paulo, sentindo o nervosismo e a adrenalina a fazerem bater-lhe o coração a ritmos incontrolados. - Agarra-te, palerma! - exclamou Myra, depois, vendo que Paulo estava literalmente imóvel que nem uma estátua, abraçou-o, inesperadamente. Paulo não percebeu o que se estava a passar. Tudo o que viu foi que, de um momento para o outro, parecia não ter peso. O seu corpo flutuava! Para pasmo de todos os transeuntes, Paulo e Myra ergueram-se acima das suas cabeças, num suave arco, qual Mary Poppins agarrada ao seu guarda-chuva voador. As pessoas olhavam para o alto, incrédulas. Os militares estavam embasbacados, os rostos fitando algo de incompreensível, as armas esquecidas. Sem aparente esforço, o detective e a extraterrestre passaram por cima de tudo e de todos, flutuando quase à altura do tecto da gare, depois começaram a descer lentamente, como uma pena ao sabor do vento. Paulo apercebeu-se de súbito da situação. Pestanejou. Não podia acreditar no que estava a ver! Myra, abraçada a ele, sustentava-o nos seus braços, lá bem no alto... mas agora desciam, flutuando no espaço vazio, no ar, sem qualquer tipo de apoio... voava... mas parecia tudo tão natural, tudo decorria como em câmara lenta... os soldados recuperavam do choque inicial, apontavam as armas, as pessoas atiravam-se para o chão... Paulo compreendeu então que se tinha tornado num alvo muito fácil de atingir. - Merda!! - exclamou ainda Myra, quando os primeiros militares dispararam. Mas já tinham ultrapassado as suas barreiras humanas, dirigiam-se agora para a entrada do Metro. Desceram muito mais rapidamente, balas a assobiarem no ar, o matraquear das metralhadoras a ecoarem na grande catedral de cimento. De imediato, Paulo voltou a ganhar peso, o seu corpo passou a reagir logo que as suas pernas pousaram no chão. O tempo deixara de estar suspenso. O olhar de espanto que lançou a Myra não durou mais do que um instante; depois lançou-se numa corrida na direcção do Metro. Os soldados ainda os perseguiam. Paulo tinha um milhão de perguntas a fazer a Myra, mas não havia tempo; lançaram-se nas escadarias para a estação do Oriente. Os polícias à sua volta falavam para os seus rádios. A perseguição continuava. Mas tinham agora um enorme avanço; entraram a correr na estação de Metro, esbarrando com velhotas, turistas, e mesmo pedintes cegos. Com um pulo alcançaram uma composição que estava prestes a arrancar; as portas fecharam-se com o zunir da buzina de aviso, e o combóio partiu. Para trás tinham ficado militares, polícias e todos os que os perseguiram. Paulo estava ofegante. Mas sabia que continuavam a não estar livres de perigo. A qualquer momento podiam mandar parar aquela composição, proceder a uma revista minuciosa no meio dos túneis, de onde não haveria escapatória... a jovem extraterrestre também a custo recuperava um ritmo respiratório aceitável. Depois reparou que Paulo a observava e sorriu. Paulo abanou a cabeça, aproximou-se dela e disse, num murmúrio: - Podem mandar parar o Metro a qualquer altura. Espero que tenhas mais dos teus... truques. - Ah, - fez ela simplesmente. - Pois... preferia não ter recorrido ao gerador de gravidade em público... - Que gostava de saber onde o trazes, - fez notar Paulo. A jovem extraterrestre ainda só usava os calções e T-shirt sujos. Myra sorriu, apontou para o relógio e deu-lhe umas batidas no vidro. Parecia um relógio vulgar, de ponteiros, comprado na Feira da Ladra ou de Carcavelos. - Queres dizer que... Myra apenas levou um dedo aos lábios e Paulo calou-se. O Metro entrou noutra estação; as portas abriram-se e fecharam-se. Seguiram viagem. Estavam poucas pessoas nas carruagens. Mas na estação seguinte, o Metro encheu. Paulo olhou para o seu próprio relógio. Não deveriam levar assim tanto tempo para os detectarem. Pensou que seria melhor saír na próxima estação, apanhar um táxi. Mas também se lembrou do óbvio: as estações deveriam estar todas a ser vigiadas. Ou ainda não? O que seria mais arriscado, saír agora ou depois...? Infelizmente na estação seguinte ainda entraram mais pessoas; não havia hipótese de conseguirem saír. Paulo aproximou-se mais de Myra, pegou-lhe num braço, e, sussurando, expôs o seu plano: saír na próxima estação, arriscar, mudar de meio de transporte. Ela encolheu os ombros. - Tu é que és o perito... Mas o plano não foi posto em prática. Na estação seguinte, militares e polícias, trabalhando lado a lado em mútua cooperação, bloqueavam a entrada ao Metro. O padrão era o mesmo: os militares avançavam, os polícias seguravam as saídas e passavam todos em revista. As pessoas que saíram foram colocadas em quatro filas separadas, e revistadas, uma a uma, para grande desagrado dos passageiros, que protestavam com veemência, alegando estarem atrasados para isto ou aquilo... os polícias, contudo, nem se dignaram a fazer qualquer comentário. Obviamente, muitas pessoas continuavam no interior do Metro, por isso os militares também entraram. - Merda! - exclamou Myra, quando as portas se fecharam. - Agora é que estamos feitos, - resmungou Paulo. - A não ser que tenhas mais truques mágicos... tipo ficarmos invisíveis, ou coisa parecida... Myra lançou-lhe um olhar furioso. Os militares aproximavam-se, de um dos extremos da carruagem. Depois a jovem extraterrestre pareceu lembrar-se de alguma coisa. - Esta linha... é aquela que tem uma passagem aérea, não é? Paulo olhou para os painéis informativos no tecto da carruagem. - Sim, um viaduto sobre o Vale de Chelas... porque perguntas? - É antes da próxima paragem... - matutou ela. Nisto, a iluminação mudou, para a luz clara do dia: a composição atravessava um viaduto em espaço aberto. Myra reagiu de imediato. Agarrou-se ao sistema de travagem de emergência; ouviu-se um chiar prolongado, faíscas que saltaram, depois as carruagens do Metro levaram uma forte sacudidela antes de terminarem a sua marcha, abruptamente, fazendo com que a maior parte dos passageiros fosse atirada para o chão. As pessoas gritaram, de surpresa e em histeria; a presença de militares armados na carruagem, mais a paragem súbita, não estava propriamente a manter a calma... Paulo fora um dos que tinham caído. Ergueu-se com dificuldade, não compreendendo ainda bem o que se estava a passar. O Metro tinha parado. Fixe. E agora? Estavam a umas centenas de metros da estação mais próxima, e os militares estavam na mesma carruagem que eles... agora é que não podiam fugir mesmo. Mas Myra pareceu imperturbável. Agarrou num extintor e bateu com toda a força nos vidros da carruagem, arrancando mais gritos aos passageiros histéricos. Paulo gritou: - Myra...! - mas era tarde demais. Com mais duas pancadas nos vidros, estes estilhaçaram-se, quebrando-se em mil pedaços. Os militares reagiram de imediato, exclamando: - Deitem-se no chão! Deitem-se no chão, já! - Muitas pessoas obedeceram, outras já estavam no chão e ainda não se tinham levantado; outras estavam paralisadas pelo medo, histéricas, aos berros. Ouviu-se o ruído de armas a serem destrancadas. Paulo semiergueu-se, apoiando-se num braço. Os militares gritaram-lhe: - Você aí! Não se mexa! A jovem extraterrestre manteve o sangue-frio. Apontou o extintor na direcção dos militares e disparou um jacto de gás carbónico, que mais parecia algodão doce. Em segundos a visibilidade no interior da carruagem desceu para zero; os militares ficaram sem possibilidade de os atingirem; pior ainda, esta fora a última gota para os passageiros, que agora entravam numa onda de pânico generalizada. - Lá para fora! Salta! - exclamou Myra rapidamente, pegando no braço de Paulo, que se sentiu arrastado para fora do conjunto de pernas e braços entrelaçados e pessoas aos gritos. - Saltar...? - balbuciou Paulo, mas era tarde demais. Myra abraçou-se a ele e empurrou-o para fora da carruagem. O detective precisou de dois segundos para se aperceber que estava a caír do alto de um viaduto com mais de cinquenta metros de altura, para se despenhar nos pedregulhos em baixo. Só então desatou a gritar. Mas depois reparou que o chão não se estava a aproximar tão depressa como devia. Na realidade, parecia estar num elevador lento. Nem sequer se sentia a deslocação de ar. Mexeu a cabeça para observar melhor; ainda estava transtornado por ter sido empurrado brutalmente para uma queda mortal... aparentemente mortal. - Eh! Que pensas que estás a fazer?! - exclamou Myra, e abraçou-o melhor. Paulo sentiu a respiração ainda quente e ofegante da jovem, que o fitava com olhos azuis, duros, e profundamente irritados. A situação teria sido mais romântica se não estivessem a caír... Myra desviou o olhar para o pulso e praguejou de novo. - A carga está no mínimo, bolas para isto... nunca fizeste paraquedismo? Enrola-te quando tocares o chão. - Quê? - fez Paulo, mas era tarde demais. De súbito, a deslocação de ar aumentou substancialmente de intensidade, Myra largou-o, e caíram, desta vez sujeitos a toda a aceleração da gravidade. Foi uma queda curtíssima, de apenas uma fracção de segundo, mas foram talvez uns sete ou oito metros até que os pés de Paulo tocassem terra firme. Tudo foi demasiado rápido para sequer escolher um melhor lugar para onde caír; rebolou pelo chão durante uns metros, o céu e a terra alternando-se numa cambalhota prolongada, e finalmente estacou, esbarrando contra um objecto sólido qualquer. Gemeu e cuspiu pó. Depois ergueu-se, cambaleante. Não parecia ter partido nada. Tinha chocado contra uma rocha qualquer, mas, para além dos braços esfolados, não tinha sofrido nada. Olhou em redor. Acima dele estava a carruagem do Metro, vendo-se alguns militares à janela. Quando compreenderam que Paulo estava vivo começaram a disparar. Paulo abrigou-se atrás da rocha; as balas silvaram pelo ar, fazendo ricochete na pedra. - Myra! - exclamou, recordando-se então da jovem extraterrestre. - Vinte metros à tua esquerda, atrás do arbusto, - veio a resposta dela. Paulo olhou nessa direcção. Myra também parecia não ter sofrido demasiado com a queda. - Vem para aqui, se eles continuarem a disparar, isso não é protecção, - disse o detective. Por momentos desejou ter consigo uma arma qualquer. Mas afastou a estupidez desse pensamento da sua mente. Não podia disparar contra membros das Forças Armadas Portuguesas! Seria acusado de homicídio voluntário, ou pior ainda... Myra aproveitou o espaço de tempo que um dos militares levou para recarregar a sua arma para se arrastar para junto de Paulo. Coxeava de uma das pernas. - Acho que torci um tornozelo, - queixou-se ela. - Deixa ver, - pediu Paulo. Apalpou o tornozelo com perícia. Abanou a cabeça. - Não, foi apenas um mau jeito ao caíres, não chegaste a torcê-lo... - Percebes alguma coisa disso? - perguntou Myra, de mau modo. Paulo corou. - Bem... estudei Medicina, de facto, mas nunca exerci, - explicou ele, embaraçado. - Um médico detective? - interrogou ela, surpreendida. - Queria ir para Medicina Legal, - disse Paulo apressadamente. - Podemos discutir isto mais tarde, quando não estivermos sob fogo? E agora? Tens mais alguma magia que nos seja útil? - Deixa-te de piadinhas, - resmungou ela, observando o viaduto. Os militares tinham deixado de disparar. Paulo também observou isso e explicou: - Estão apenas a certificar-se que não fugimos daqui. Por rádio comunicam com os camaradas, que dentro de pouco tempo hão-de chegar aqui em jipes... - Então se calhar era boa ideia fugirmos mesmo, - sugeriu Myra. - Só há uma maneira: aproximarmo-nos do viaduto e fugirmos do outro lado, - disse Paulo. - Eles vão ter de partir o vidro do lado de lá antes de poderem começar a disparar. Dá-nos algum tempo de vantagem. - Olhou para o outro lado. - Temos de subir àquele monte o mais depressa que pudermos. É uma questão de minutos até os militares saírem da estação e nos cercarem no vale. O teu relógio mágico não tem nada que desvie balas? - Se ainda tivesse carga, talvez servisse para alguma coisa, - disse Myra, frustrada. Bateu na tampa do relógio. - Agora nem as horas dá. Vamos lá subir um monte... - Tens o tornozelo magoado, - mencionou Paulo. - Que queres que faça? Que vá às tuas cavalitas? - troçou ela. E, sem aviso prévio, começou a correr, ainda coxeando visivelmente. Os militares levaram algum tempo a recompôr-se; Paulo viu-os a recuarem para o interior da carruagem, muito provavelmente compreendendo que teriam de partir os vidros do outro lado... mas isso dava-lhe a ele a oportunidade de perseguir Myra. Rapidamente a ultrapassou, pois Myra não conseguia correr assim tão depressa. Ouviu-se um estrondo de vidros quebrados do lado do viaduto, mas nenhum dos dois olhou para trás; em vez disso, começaram a subir pela vertente do vale, procurando, sempre que possível, encontrar rochas que os protegessem. Pouco depois chegou-lhes aos ouvidos o matraquear das armas e o zumbido das balas no ar; mas estavam quase a chegar ao topo do vale. Myra gemia agora sempre que tinha de apoiar o pé magoado, e Paulo deu-lhe apoio, sempre que podia. Chegaram ao topo. Tal como Paulo prevera, os militares saíam da estação e vinham a correr na sua direcção. O detective estava a começar a ficar cansado. Simplesmente desta vez tinha uma enorme vantagem. Correram até ao edifício mais próximo: o centro comercial das Olaias, onde também havia uma praça de táxis. Até os militares compreenderem o que eles planeavam fazer, levaram demasiado tempo; tinham de dar meia volta para irem buscar os veículos. Mas Paulo conseguira arrastar Myra para um táxi, exclamando para o motorista: - Para o Largo do Rato... e o mais depressa que conseguir!
7. Paulo não conseguiu conter-se e olhar de minuto a minuto para trás, mas a verdade é que ninguém os seguira. Deu a morada do restaurante «Trapos», que lhe pareceu mais segura do que a da própria Subdivisão de Crimes Extraordinários. Quando lá chegaram, Myra a desempenhar o papel de turista inocente, admirando, deliciada, a arquitectura do quarteirão, Paulo tomou conta da cabine pública e ligou para a SCE. Já caía a noite, mas por vezes Duarte Nunes ainda se encontrava no seu fumarento gabinete... como foi o caso. Paulo foi muito breve: disse que, independentemente do que ele tivesse ouvido, queria falar com Duarte Nunes em particular, no «Trapos», sozinho; que depois lhe explicaria tudo; que ficava a aguardar. E desligou de imediato. Contava um pouco com a curiosidade insaciável de Duarte Nunes para não o trair... mas de qualquer das formas, segurando Myra pelo braço - notou com curiosidade que, ao longo das últimas horas, ora um, ora o outro, conduzia o parceiro - Paulo verificou onde era a saída das traseiras, qual a melhor forma de desaparecer dali em caso de emergência, que hipóteses teria de enfrentar um grupo de militares armados até aos dentes. Só depois se sentou na mesa cativa do detective Duarte Nunes, deixando-se caír de forma desconjuntada, cansado. Myra, embora também cansada, sentou-se com maior graciosidade, apesar do tornozelo inchado e doloroso. O empregado do costume, o Sr. Vítor, não fez comentários mas também não disfarçou o pequeno sorriso; colocou pratos para três pessoas, pois sentarem-se naquela mesa em particular era sinal mais que evidente da presença de Duarte Nunes... Tirou um cigarro do maço já amorfanhado, ofereceu outro a Myra, e, cansados, os efeitos da adrenalina a passar, fumaram em silêncio durante algum tempo. Tocaram nos aperitivos, uma chouriça assada, azeitonas, um queijo de azeitão, pão de Mafra ainda fresco, apesar da hora tardia... e pouco depois Duarte Nunes surgiu, recortado na porta contra a escuridão da noite que se abatia sobre Lisboa, um momento antes da iluminação pública se ligar. Paulo sorriu com satisfação; o detective-psicólogo-sociólogo-astrónomo viera sozinho, sem olhares subreptícios para trás. Mas não vinha nada satisfeito. Sentou-se à mesa sem uma palavra, o seu olhar pousando de imediato na jovem extraterrestre, que acabava de comer uma azeitona e lhe devolveu o olhar. Duarte Nunes ergueu um braço, apontou na direcção de Myra: - Se essa jovem é quem eu penso que é, estamos todos tramados, - disse o sociólogo mais irreverente da PJ. Myra apenas sorriu com o elogio, passou a mão pelos seus cabelos, que mesmo sujos e secos tinham um certo encanto, e de forma elegante e charmosa, muito educada, cruzou as pernas sensualmente. Depois estendeu a mão e disse: - Myra Naldur, é um prazer conhecê-lo. - Meu Deus! - exclamou Duarte Nunes de imediato. Afundou-se na cadeira, completamente desanimado. Apenas por reflexo cumprimentou a jovem extraterrestre. Depois lançou um olhar furiabundo a Paulo Vasconcelos. - Não podias resistir, pois não? - Iam matá-la, dissecá-la... - balbuciou Paulo. - C'om a breca, Paulo, mas tens metade do exército e da polícia atrás de ti! Ainda não é público, claro, mas até na SCE sabemos que estás envolvido em algo de incrível... rapto, traição, fuga às autoridades, o rol de crimes nunca mais termina... - exclamou Duarte Nunes. - Como, como te pudeste envolver numa coisa dessas?! Onde está o teu bom senso? Para que é que serviram os teus treinos na PJ? E, se isso contar para alguma coisa, para que é que serviram as minhas palavras, como amigo?! - Mas... - protestou Paulo, mas foi violentamente interrompido pelo sociólogo, que corava visivelmente, de raiva. - Cala-te! Não abras mais a boca! Nunca vi tamanhos disparates feitos em tão pouco tempo! Bolas, bolas, e mais bolas, para ti, para essa jovem ao teu lado, para os militares... - Suspirou. Paulo ia a dizer qualquer coisa, mas o detective mais velho ergueu um braço, furioso, e as palavras do jovem morreram-lhe na garganta. Seguiu-se um silêncio desconfortável em que ninguém falou. Myra estendeu os delicados dedos, agora esfolados pelas trepadelas ao longo de vales cobertos de musgo e urtigas, e levou mais uma azeitona negra aos lábios. Por fim, Duarte Nunes voltou a concentrar-se na jovem. - Se eu não soubesse o que estou a ver não acreditava, claro... você é completamente humana. Passaria despercebida em qualquer ponto da Terra. Ela arqueeou uma sobrancelha. - O senhor também passaria despercebido na maior parte dos planetas da Aliança, - tornou ela, com um lindo sorriso. - Ok, ok, vamos cortar com isto, está bem? - interrompeu Paulo. - Já assisti a este filme antes... quero comer alguma coisa, estamos há horas e horas de jejum, depois podemos falar no assunto... Sr. Vítor! - chamou o jovem detective, e o empregado aproximou-se para tomar nota dos pedidos. Duarte Nunes estava dividido entre o fascínio pela jovem extraterrestre e as severas críticas que queria tecer a Paulo. Por fim, o dever foi mais forte que ele. - Já paraste cinco minutos para pensares no que fizeste...? Achas mesmo que te vais safar? Os Serviços Secretos andam em pulgas para vos capturar aos dois... estão todas as agências juradas ao maior secretismo, mas estão todas na rua... és persona non grata daqui aos Urais, pelo menos... - Temos um plano, - disse Paulo. Myra arqueeou as sobrancelhas. - Temos? Paulo ficou desconcertado com o tom de voz de Myra. - O que falámos na viagem de combóio... Diogo, eles só vão procurar Myra durante 48 horas. - Explicou a questão da operação, marcada para depois de amanhã. - Depois disso, a vergonha de admitir que a extraterrestre está em fuga será demasiado grande; vão provavelmente admitir que ela morreu e... Duarte Nunes abanou a cabeça, interrompendo-o. - Paulo, Paulo, não fazes a menor ideia do que para aí estás a dizer... é certo que vão provavelmente admitir que Myra morreu também na queda, mas vão fazer tudo por tudo para a recuperarem! Aliás, vão provavelmente usar ainda mais recursos para o fazerem: uma oportunidade única, a de entrevistarem uma extraterrestre sem interferência dos parceiros da NATO! Porque julgas que vão deixar de persegui-la? - Porque se o fizerem ninguém vai acreditar que ela desapareceu, certo? Por isso não podem empregar tantos meios como até agora... serão mais cautelosos, mais secretivos... talvez até queiram negociar connosco, - tornou Paulo. - És um romântico, Paulo, - acusou Duarte Nunes, preocupado. - Sabes lá se isso vai ser assim. Myra é demasiado preciosa para os militares portugueses. Acredito até que sejam capazes de admitir que ela foi raptada apenas para a poderem recuperar. Vão se interrogar se valerá a pena perder Myra por completo, mantendo o secretismo, ou se é melhor dizer à NATO a verdade e prosseguir as buscas. Tenho quase a certeza que é o que irão fazer. Paulo suspirou. Depois olhou para Myra. - Temos de te fazer saír da Terra. Ela sorriu, embora não de forma irónica, mas sim um sorriso triste, resignado. - É um pouco difícil, a minha nave foi abatida e não vai poder voltar a voar. - Podemos negociar com eles, ameaçá-los de contar a verdade às agências noticiosas, como combinámos... Tentar reparar a nave... Myra, se a tua nave não voltar a funcionar, como vais regressar a casa? - perguntou Paulo, como se se tivesse lembrado disso pela primeira vez. Ela encolheu os ombros. - Posso chamar um táxi, - disse ela simplesmente. - Deixa-te de bocas foleiras, por favor, - pediu Paulo, farto da ironia dela. - Não estava a brincar... o satélite de telecomunicações pode enviar um sinal de socorro para Andor... chamando assim a nave que estiver mais próxima, neste quadrante... claro que os meus pais não iriam achar grande piada à brincadeira, saber que uma filha tinha violado não sei quantas convenções ao entrar na Terra... - Hmmm, acho que vais ter mesmo de fazer isso. Eu também violei não sei quantas convenções ao libertar-te dos militares, - contrapôs ele. - Bem, posso mudar de aspecto, pintar o cabelo, - disse ela, mas não estava a falar a sério. - Está bem, eu mando o maldito sinal. - Suspirou. - Provavelmente irei para um planeta-prisão qualquer... - Mais vale isso do que a morte certa na Terra, - disse Paulo. - Quando é que podes mandar o sinal? - Paulo, serão precisas semanas, talvez mesmo meses, até que mandem uma nave para cá, - explicou ela. - Até lá muito se vai passar... Paulo voltou-se para Duarte Nunes. - Temos de escondê-la num lugar seguro! O sociólogo abanou a cabeça. - Tudo o que estou a ouvir é perfeitamente fascinante, mas sejamos realistas. Os militares, a polícia, os serviços secretos, todas as instituições estão atrás dessa jovem que está aqui calmamente a jantar connosco... Paulo desatou então a explicar o plano deles, os esquemas com as gravações por satélite, as potenciais ameaças de revelar tudo se fossem descobertos. Explicou também como tinham escapado até agora. Mas Duarte Nunes não estava nada convencido. - Paulo, isso é capaz de funcionar nos filmes e nos romances policiais, mas nunca funcionaria na realidade. Os serviços secretos são capazes de interceptar as mensagens, de enviarem um press release a dizer que é tudo aldrabice. - Mas temos provas... - fez notar o jovem detective. - Que são facilmente destruídas. Logo que o satélite comece a emitir, e antes de ser possível enviar uma nave para órbita para confirmar a sua existência, os militares da NATO podem pura e simplesmente abater o satélite com um míssil. Tudo o que precisam é de ouvir a primeira emissão. Depois dizem pura e simplesmente que se trata de uma falsificação romântica. Bolas, Paulo, tu viste bem o que eles fizeram com a informação supostamente secreta que nos enviaram naquele dossier... nem a nós contaram a verdade... o teu retrato e o de Myra apenas têm a indicação de «acusado de rapto e crime de alta traição contra o Estado português» e pouco mais... Myra apenas surge como vítima do atentado. Nem sequer referem que és um detective da PJ, isso podia causar algum conflito, pois teria de ser o Ministério dos Assuntos Internos a investigar, logo, fora da juridisção das polícias regulares ou militares... está tudo rodeado do maior secretismo... eles não estão a brincar, como vocês os dois parece que estão a fazer... Myra falou então de novo, até agora silencioso: - O que propõe então que façamos? Duarte Nunes hesitou. Depois, coçando a testa escassa de cabelo, disse: - O Paulo que se entregue, que alegue que foi manipulado pela Myra para a libertar... os militares decerto vão acreditar nisso, se for suficientemente plausível... afinal de contas, viram muitas coisas inexplicáveis. Pode ser que até retirem as queixas... Paulo bateu com o punho na mesa. - Não! Recuso-me a fazer uma coisa dessas! Entregar Myra, para ser dissecada, ou pior... não, não pode ser! - Estás apenas a adiar o inevitável, - disse Duarte Nunes. Os três foram interrompidos pelo amável Sr. Vítor, que chegava com os pedidos. Perderam os primeiros cinco minutos da refeição em silêncio. Paulo e Myra estavam mortos de fome. Ao fim de algum tempo, Myra foi a primeira a falar: - Bom... talvez vocês não tenham muita consciência disso, mas eu tenho imenso jeito para passar despercebida. - Como assim? - perguntou Paulo, que se sentia desmoralizado. - O problema aqui está essencialmente em os militares procurarem Paulo e eu ao mesmo tempo, certo? - Bem... - fez Paulo. - Quero dizer que é fácil chegarem a mim se passarem pelo Paulo. Ou seja: basta seguirem Paulo, que mais cedo ou mais tarde me encontram a mim. - Sim, mas... - Portanto parece-me lógico que nos separemos. E parece-me também que a ideia de te entregares, Paulo, é boa. Podes dizer que eu te hipnotizei para me libertares, por exemplo. E dizes que não sabes onde eu estou. Eles seguem-te durante uns tempos. Se não me encontrarem, vão acabar por desistir de ti. Paulo mastigou o bitoque que pedira com cuidado, enquanto pensava no assunto. - Como podes ter tanta certeza disso? Eles têm a tua descrição... - Mudo de país, mudo de aspecto. Oh, descansa, eu disse-te que estive frequentemente em situações complicadas. - Ela sorriu, acabando a sua refeição. - Salvaste-me a vida, libertando-me da pior situação em que jamais me encontrei... mas agora acho que me consigo safar sozinha. - E como regressarás a casa...? - perguntou Paulo. - Há várias alternativas... não preciso de regressar já... posso ir à boleia. - Riu-se da cara de espanto de Paulo. - Oh, obviamente que há mais turistas andorianos na Terra! A única coisa que preciso de fazer é entrar em contacto com eles, explicar-lhe que tive uma avaria, pedir boleia... quem cá está será compreensivo... sim, talvez leve algumas semanas até os descobrir, mas sozinha tenho muito melhores hipóteses. E escusas de te preocupares mais comigo... ou contigo. Paulo enfrentava um conflito interno. Por um lado, claro, estava satisfeito por se libertar da responsabilidade de proteger Myra; assim como de «limpar» o seu bom nome, deixando de precisar de se preocupar de olhar sempre por cima do ombro para trás. Por outro lado, sentia que estava a perder a Grande Oportunidade da Sua Vida, ao deixar Myra desaparecer sem ter revelado todos os seus mistérios, sem poder ter recolhido um relatório extenso sobre a vida noutros planetas, sobre a Aliança, sobre todas as coisas maravilhosas que Myra tinha e conhecia. Duarte Nunes também se parecia resignar à situação. Com o café apenas comentou: - Ainda estamos muito longe de um primeiro contacto formal, não estamos? Myra sorriu complancentemente. - Já deram os primeiros passos, ao desenvolverem sondas espaciais que chegaram aos confins do vosso sistema solar, assim como as primeiras bases semi-permanentes em órbita, na Lua e em Marte... estão quase a unificar a gravidade com as restantes forças físicas, e quando o fizerem, os vossos físicos farão uma terceira revolução na ciência, mais importante que as dos vossos Einstein e Planck... falta muito pouco tempo. Talvez um, dois séculos no máximo... O velho detective suspirou, visivelmente desapontado. - Ah, já não viverei para ver isso... Myra, gentilmente, pegou-lhe na mão, e dedicou-lhe um pequeno sorriso. - Não será um acontecimento assim tão surpreendente. A Aliança é humana, como vocês. Vamos apenas enviar embaixadores. A vossa tecnologia será praticamente indistinguível da nossa. Vão ficar desiludidos por não sermos super-seres com uma civilização e moralidade avançadíssimas; os vossos militares e industriais vão ficar desapontados por não terem acesso a tecnologias ultra-sofisticadas. Por isso, não vai ser mesmo nada de especial... - Suspirou. - Em compensação, vão perder tanta coisa!... O turismo aqui estagnará completamente, quando a vossa querida Terra for apenas mais um planeta da Aliança... não sei... vocês na Europa, pelo menos, ainda têm imensos laços históricos com o passado, não destroiem tudo para começar de novo do zero, ao contrário dos orientais e dos americanos. A esmagadora maioria dos planetas na Aliança são como New York: continuamente a ser destruída e construída de novo. Tudo igual, em todo o lado. O Império Andoriano, a nação mais poderosa da Aliança, é completamente homogêneo em toda a sua extensão, ao ponto de se terem feito alterações aos planetas para terem a mesma rotação que o planeta-mãe... oh, claro que existem planetas turísticos, mas são tão artificiais como Vilamoura no Algarve ou as Ilhas Canárias... isto - e ergueu os braços - isto é que é real, isto é que é bonito, séculos e séculos de tradição, de história, de costumes, de... de civilização! - Mas os outros planetas, outras civilizações, não-terrestres, e até não-humanas... - insistiu Duarte Nunes. - Já esteve na Europa Central? Todas as cidadezinhas são iguais, umas às outras. Mas, mesmo assim, ainda existem algumas que se distinguem das outras... pior é nos Estados Unidos: todas as cidades são iguais, excepto, talvez, as da Flórida ou da Califórnia... São Francisco distingue-se por não ter arranha-céus, mas fora isso... é tudo homogêneo, igual. A Aliança é assim: todos os planetas são iguais. Todos falam a mesma língua, têm a mesma cultura, lêem os mesmos livros - sim, ainda lemos livros - ou ouvem a mesma música... homogeneidade cultural total... aqui e ali, é certo, existe um ou outro planeta que se agarrou um pouco mais ao seu passado, mas ao longo dos séculos, as diferenças acabam por não se notar. Nos primeiros anos depois do tal... contacto formal, a Terra provavelmente fervilhará de projectos, e será inundada por turistas. Será uma altura interessante, de facto; mas durará apenas um ou dois séculos. Daqui por cinco séculos, ninguém na Terra terá a mínima consciência do período em que não existia a Aliança. - Suspirou de novo. - E isso é infinitamente triste... dê graças por nunca chegar a ver isso. Ficaram os três calados por um momento. O velho sociólogo não estava muito convencido; enquanto enchia o velho cachimbo, perguntou: - Mas tu aprecias a Terra justamente por ainda ter uma identidade cultural específica. Há outros como tu, que fazem turismo ilegal na Terra. Porque é que não organizam um movimento, uma organização que proteja essa identidade cultural, ou que pelo menos reconheça o direito aos novos membros a manterem essa identidade cultural... Myra riu-se. Agarrou numa lata de Coca-Cola e abanou-a. - Está a ver isto? Marca centenária. Existe em todos os países da Terra. Será difícil encontrar alguém que, hoje em dia, não reconheça a marca. Vários biliões de pessoas em toda a Terra que consomem esta bebida, se não regularmente, pelo menos conhecem-na. Pergunta: existe algum organismo terrestre que queira combater a Coca-Cola? - Bem, estava a falar de cultura, não de bebidas, - protestou Duarte Nunes, acendendo o cachimbo, largando umas fortes baforadas, cujo odor depressa encheu o restaurante, agora quase vazio de pessoas. - Cultura, bebidas... é tudo a mesma coisa, - disse Myra, encolhendo os ombros. - Repare, eu nasci em Andor, capital do Império Andoriano, e onde foi também a primeira sede da Aliança, hoje mudada para outro planeta por questões políticas, agora irrelevantes... há mais de dois milênios atrás, quando o nosso Império foi constituído, existiam várias nações diferentes, cada qual com a sua língua, a sua cultura própria, a sua identidade, tal como na Terra... com um governo planetário, a pouco e pouco as diferenças começaram a desaparecer. Quando colonizámos as primeiras estrelas, já éramos um só povo, uma só nação, uma só cultura. As primeiras colónias eram iguaizinhas ao planeta-mãe. Quando esbarrámos nas tentativas de expansão planetária de outros povos, absorvemos parte da cultura deles, e eles parte da nossa. A Aliança existe há menos de um milênio, mas mil anos são muitos anos, mesmo para um povo como o nosso que vive, em média, durante quase dois séculos e meio... todas as diferenças tendem a desaparecer com o tempo. Foi o que aconteceu connosco. É o que vai acontecer na Terra também. Não é por acaso que a colonização de outros planetas surge muito perto da altura em que existe um governo planetário; nos outros povos foi sempre assim. É preciso um longo período de paz para desenvolver determinado tipo de coisas, como a civilização, embora a guerra seja um excelente impulso para desenvolver tecnologia... vocês neste momento travam uma feroz guerra económica, muito fértil em novos desenvolvimentos tecnológicos... mas ao mesmo tempo, procuram estabelecer blocos e alianças a nível planetário... as vossas primeiras bases semi-permanentes fora da Terra são sempre internacionais... ainda estão um pouco longe disso, mas é quase assumido que um dia a vossa Organização das Nações Unidas seja, de facto, um órgão que governe todo o planeta, seja de uma forma, seja de outra - provavelmente mesmo de forma muito diferente da actual. Depois vão-se começar a esbater as diferenças culturais entre todos os povos da Terra... e quando forem formalmente convidados a integrarem a Aliança, vão perder até as vossas qualidades de terrestres... - Mas falaste que a Europa era diferente... - notou Paulo, fascinado com todas as suas palavras. Ela de facto tinha pena do que iria acontecer. - Talvez apenas uma esperança vã da minha parte. Os Europeus cultivam a sua civilização... dão-lhe valor, para além de tudo o resto... mas enfim. - Sorriu tristemente. - Nada disto vos precisa de preocupar nas próximas décadas. - Se calhar devíamo-nos preocupar, - comentou Paulo. - Seria bastante importante espalhar esses teus conhecimentos, preparar a Terra para o ingresso na Aliança, organizar movimentos para preservar a cultura terrestre... Myra abanou a cabeça. - É demasiado cedo. Eu só vos conto estas coisas todas se não tivesse a certeza absoluta de que mais ninguém iria acreditar em vocês. Nesta altura, ninguém na Terra acredita verdadeiramente na possibilidade de «invasão» por criaturas de outros mundos. Sim, claro, escrevem livros e fazem-se filmes sobre o assunto, mas ninguém realmente acredita nisso, mesmo com provas... - Mas tu és a prova que precisamos, - fez notar Paulo com algum entusiasmo. - Já falámos nisto antes... - Se eu fosse verde com tentáculos, talvez servisse como prova de alguma coisa, - comentou ela. - Humana, não convenço ninguém - excepto provavelmente os militares e os serviços secretos. Terminaram a refeição. Não havia nada mais a fazer. De certa forma, Paulo sentiu-se traído. Não era nada daquilo que ele esperava conseguir fazer ao libertar Myra da base militar de Beja. Por outro lado, Myra estava viva, e não iria ser torturada e massacrada pelos militares. Pelo menos isso. Mas, de certa forma, a verdade não iria ser revelada - jamais. E isso Paulo não conseguia aceitar facilmente. No táxi onde seguia com Myra para um hotel, onde ela passaria uma noite antes de desaparecer definitivamente de circulação, Paulo murmurou: - No mínimo dos mínimos, podíamos ter feito as gravações na PJ, arquivar um depoimento teu sobre tudo o que tu sabes. Duarte Nunes podia ter feito as questões verdadeiramente relevantes... - Posso mandar-te isso pelo correio, - disse Myra, bem humorada. O detective resmungou. - Ainda não percebi muito bem como é que vais passar despercebida. Até agora não fomos lá muito felizes... - O problema é mesmo esse, Paulo. Sozinha tenho mais hipóteses. - Não vejo como, - disse ele, chateado com a conversa, chateado com tudo. Ela sorriu. - Não te ponhas assim! Salvaste-me a vida, lembra-te disso. E és mais um dos que sabem a verdade. - Mesmo que seja perfeitamente irrelevante conhecer a verdade. Não a posso dizer a ninguém, não tenho provas, e mesmo que a pudesse dizer e apresentasse as provas, ninguém acreditaria em mim. Myra apenas sorriu, cruzando as pernas. Era, de facto, uma jovem admiravelmente elegante, e Paulo não resistiu a fazer um comentário nesse sentido. Myra apenas disse: - Em Andor, todas as mulheres que tenham dinheiro adquirem muito cedo terapia genética para as tornar mais belas. - Quer dizer que no teu mundo a engenharia genética em humanos é legal? - surpreendeu-se Paulo. - Sim... porque é que não haveria de ser? - Porque se podem criar monstros, ou ter demasiado homens, ou demasiadas mulheres, ou criar uma classe de pessoas com engenharia genética que fossem de facto superiores às outras, criando imensos problemas sociais... - Balelas. Pareces um religioso da Idade Média, a condenar os parcos avanços da ciência na altura, atribuindo-lhes todos os tipos de superstições... sim, é claro que apenas os ricos têm acesso a essa tecnologia, e que os pobres têm de sofrer com as suas doenças e as suas deformações... mas olha para a tua própria História, Paulo! Não foi sempre assim? Não será sempre assim? - Mas que hipócrita que me saíste! - exclamou ele, surpreendido. - Ora, nem por isso. Talvez o maior defeito do Império Andoriano é nunca ter sido uma democracia, embora a Aliança seja algo de muito perto disso. Os humanos na galáxia conhecida sempre foram assim, lutando, os melhores e mais ricos acima, os pobres e fracos em baixo, sempre oprimidos... a única diferença, talvez, é que com o tempo e com uma tecnologia cada vez mais acessível a todos, os pobres vivem cada vez melhor. Mas há-de sempre haver um opressor e um oprimido... não acredito em sociedades sem classes. Não existem em parte nenhuma do Espaço Humano. - E fora dele? Myra silenciou-se. - Fora dele não sei; sou apenas humana. Não consigo compreender como pensam sociedades não-humanas. Posso tentar estudá-las, mas jamais compreendê-las, assim como eles não compreendem as nossas sociedades. O que não impede a existência da Aliança, claro; há suficientes bases comuns para um entendimento mútuo sincero. - Mas explicaste que no fundo a Aliança é um conjunto de planetas que se defende contra inimigos externos comuns, - disse Paulo, pensativo. - Sim, mais ou menos isso. - Não pareces muito preocupada com essa guerra, - fez notar o detective. Ela encolheu os ombros. - Todos os dias estala uma nova guerra no planeta Terra, e tu não perdes o teu sono por causa disso. Porque haveria de me preocupar? A guerra está muito longe... - Mas são outras raças? Ou planetas que se separaram da Aliança? - É difícil de explicar, Paulo. Do nosso conhecimento, existem, nesta galáxia, sete grandes agrupamentos populacionais, desenvolvidos independentemente. Existem milhões de planetas habitados na Via Láctea. Nalgumas fronteiras, houve paz e entendimento: a Aliança, entre o Império Andoriano, e uma série de outras raças e nações com um objectivo pacífico comum. Noutras fronteiras encontrámos outras raças e outros planetas sem interesse em se juntarem à Aliança; ou pertencendo a outros impérios estelares, ou a outras confederações... naturalmente nasceram conflitos em torno desses planetas... - Milhões de mundos habitados... - repetiu Paulo, abismado. - Cada qual com centenas de milhões de habitantes... sim, Paulo, esta galáxia está bastante cheia, não achas? Mas ainda não dispomos de tecnologia suficiente para ir até à galáxia mais próxima em tempo útil. E provavelmente quando lá chegássemos encontravamos a mesma situação... tal como vocês neste momento se preocupam em arranjar um governo planetário, que unifique todos os povos e nações do planeta Terra, também na Via Láctea se procura obter um entendimento entre as várias raças e alianças... mas é muito difícil, Paulo. Uma galáxia apenas governada por humanos seria mais fácil de se unificar: pensam de forma diferente. Mas infelizmente não existem apenas humanos... - Como são esses... não-humanos, como tu lhes chamas? - Há de todas as espécies... em geral são humanóides, mais ou menos com as nossas dimensões. Não existe nenhuma espécie inteligente com a qual tenhamos contactado que não seja humanóide, embora existam algumas espécies aquáticas inteligentes que nunca desenvolveram uma civilização... mas o que é mais diferente não é o seu aspecto físico, ou sequer a sua bioquímica, mas sim os seus processos de raciocínio. A Aliança representa um grupo de raças que conseguem, pelo menos, encontrar alguns pontos comuns na sua forma de pensar: um misto de cooperação e competição em vez de destruição, por exemplo. A maior parte dos inimigos não conseguem compreender isso. Alguns apenas cooperam, como as formigas terrestres, e não conseguem perceber que existem outras criaturas inteligentes para além delas; são os nossos mais ferozes inimigos. Outras apenas competem entre si. E outras, aparentemente, apenas destróiem... - O que aconteceria se esses... inimigos atacassem a Terra, que seria incapaz de se defender? - perguntou Paulo. - Já expliquei que vocês são uma espécie de protectorado... nós haveríamos de intervir, claro. Oh, Paulo, não te precisas de preocupar com isso! A guerra está a dezenas de milhares de anos-luz daqui... só daqui a séculos é que poderia cá chegar. Escusas de perder noites de sono com isso. O táxi parou frente ao hotel. Paulo pagou ao motorista e saíram, com o detective ainda a comentar: - Mas se calhar vou mesmo perder algumas noites de sono. O Universo tornou-se de repente algo de muito complicado para mim... de certa forma, está mais perto. - Observou as estrelas. - Onde fica o teu planeta? Myra hesitou, fitando os pontos brancos tremeluzentes. - É um pouco difícil de se ver daqui... o nosso sol não é directamente visível da Terra. Mas fica na direcção da Cassiopeia, mais ou menos para ali - Apontou para um ponto quase no horizonte. - É longe? Ela sorriu. - Seiscentos anos-luz. Somos praticamente vizinhos! Apenas nove semanas de viagem... Ficaram um momento em silêncio, observando as estrelas. Paulo estava a imaginar a quantidade incrível de planetas habitados que giravam em torno daqueles sóis tão distantes; por momentos, quase que esperava ver naves a saltarem de estrela em estrela, fervilhando num trânsito interestelar pior que o da cidade de Lisboa. Afastou o olhar, pousando-o em Myra. Esta sorriu-lhe. - Bom... - disse Paulo, quebrando a pausa. - Julgo que seja aqui que nos despedimos... - Acho que sim, - confirmou ela, baixando o olhar. - Não te devo ver de manhã. - Não era uma pergunta, era uma afirmação. Myra abanou a cabeça. - Oh, como eu detesto despedidas! - exclamou de súbito. Fitou Paulo por um segundo e disse: - Obrigada por tudo. - Depois, num impulso, abraçou-o e beijou-o demoradamente. Paulo viu estrelas; mas estas não estavam suspensas no firmamento... - Para que foi isso? - balbuciou o detective. Ela riu-se, um riso sincero, cristalino. - Não te posso beijar? - Hm... mal me conheces. Myra desprendeu-se do abraço. - Ora, não sejas assim. Um dia bastante intenso! E ficámo-nos a conhecer muito bem. - Olhou para o hotel. - Vamo-nos embora. A sério, detesto mesmo despedidas longas e lamechas... - Não te voltarei a ver? Ela arqueou ums sobrancelha. - Porque não? - Bem... é perigoso, - disse Paulo, pigarreando de novo. - Eu gosto do perigo, - admitiu Myra. - Bom, Paulo... eu prometo escrever. Porta-te bem. Mente aos teus polícias e militares e não te preocupes comigo. E, com mais um sorriso meigo, a jovem desapareceu, hotel adentro. Ainda parou, como se se tivesse esquecido de alguma coisa. Retirou o relógio do pulso e atirou-o para Paulo. - Um souvenir! - exclamou ela, e depois apenas acenou. Quando Paulo agarrou no relógio, querendo ainda perguntar-lhe como é que aquilo funcionava, ela já tinha desaparecido. Paulo ficou frente ao hotel, em silêncio, só. Ficou vários minutos parado. Primeiro, sem sequer se mexer, sem pensar em nada. Depois observou as estrelas, que lhe pareceram muito menos distantes do que sempre calculara. No seu íntimo, travavam-se várias batalhas. Estava furioso por ver a jovem extraterrestre desaparecer: tanta informação, tanta cultura alienígena, tanta coisa desperdiçada! Tudo apenas porque a Terra não estava preparada. «Mas porque deveríamos ser nós a julgar isso?» pensou Paulo. «Nós apenas iríamos redigir a verdade, os políticos que se preocupassem com a sua divulgação...» Por outro lado, claro, Myra era uma jovem atraente. Sorriu, sentindo um pouco de calor afluir ao seu rosto. Bem, ok: muito atraente. Infelizmente nem sequer tivera tempo nem oportunidade de a observar devidamente, fora sempre fugas e correrias, e nos intervalos, discussões altamente motivantes, do ponto de vista intelectual... Apenas restara o beijo, a saber a doce de framboesa... mas Myra tinha uma personalidade tão... fútil que era difícil de saber porque é que o beijara. Fora apenas um beijo de despedida? Um agradecimento sincero? Quando, no fundo, fora ela que o safara nas situações mais complicadas... Ou teria sido apenas uma brincadeira? Suspirou. Agora, nunca mais o iria saber. Quando a nortada começou a soprar e a fustigá-lo, Paulo reparou que tinha passado muito tempo parado, a olhar para o vazio. Dirigiu o olhar para o hotel, procurando imaginar de entre as janelas iluminadas qual seria a de Myra. Tão inútil procurar no céu de estrelas o planeta de onde ela tinha vindo. Frustrado, deu meia volta e dirigiu-se para a estação de Metro mais próxima.
8. Paulo nunca compreendeu bem se Eugênio de Castro tinha ficado a par de toda a história ou não. Duarte Nunes decerto não lhe contou nada. O facto é que o seu próprio papel de «vítima de hipnotismo malicioso por parte de uma extraterrestre perigosa e implacável» lhe tinha assentado que nem uma luva. Os militares sabiam que Myra era capaz de hipnotizar rapidamente as pessoas; na base militar, todos os que estavam encarregues da sua segurança, eram imunes ao hipnotismo, após uma primeira tentativa de fuga da jovem extraterrestre, que quase que resultara, não fosse um cabo ser naturalmente imune ao hipnotismo e dado o alarme geral... mas isso explicava também porque é que Myra, apesar de dotada de tantos poderes (seriam assim tantos...?) não tinha conseguido escapar da base sozinha. Paulo pensou que afinal de contas o agradecimento dela tinha sido sincero. Fizeram-lhe uma batelada de questões, mas Paulo respondia sempre da mesma maneira. Sim, por engano tinha estado no mesmo quarto onde tinham prendido Myra na base. Sim, recordava-se de ter trocado algumas palavras. Sim, essa era uma fotografia de Myra. Sim, sabia que era uma extraterrestre. Sim, apenas discutira o caso com Duarte Nunes, pois ambos tinham sido ajuramentados para manter segredo. Sim, é possível que tivesse sido hipnotizado, que tivesse recebido uma sugestão pós-hipnótica qualquer. Não, não se recordava de nada que tinha passado ontem; quando acordou no dia seguinte, reparou que tinham passado 24 horas das quais não fazia a menor ideia do que se tinha passado. Foi para o trabalho e explicaram-lhe que era um homem procurado, e de imediato se entregou às autoridades, pois considerava-se inocente. Sim, não se importava de se submeter a testes psicológicos (embora na realidade temia esses testes...). Bem, de facto lembrava-se de algumas imagens, como num sonho... andar de combóio... ser perseguido por militares... mas era tudo vago e nebuloso. Sim, evidentemente que compreendia que iria estar suspenso até analisarem melhor o caso. - Prepara-te para os próximos dias, eles não estão muito convencidos, - advertiu Duarte Nunes, sombrio, quando a primeira sessão de questões terminou. - Sim, também me interrogaram a mim, mas creio que ficaram convencidos de que eu não sei mesmo nada. E eles não vão levar isto a tribunal. Vão apenas fazer mais umas dezenas de perguntas e arquivar o caso. Tinham de ter a certeza absoluta para avançarem com isto em tribunal... militar, presumo eu, pois os tribunais civis seriam demasiado arriscados... - Mas não estamos sob juridisção militar... - Na base estávamos, - lembrou Duarte Nunes. - Seja. As coisas estão a correr bem. Quanto à nossa amiga, alguma novidade...? - Desapareceu completamente sem deixar rasto, - respondeu Paulo, sem ocultar a sua trsiteza pelo facto. - No hotel apenas disseram que apanhou um táxi bem cedo de manhã, mais nada. Pode ter saído do país de avião, de carro, de autocarro, de combóio... - Ou a pé, - notou Duarte Nunes com um vago sorriso. - Ou a pé, de bicicleta, de cavalo... com as fronteiras abertas, é difícil apanhar quem quer que seja. - Bem, os militares continuam a vigiar as estações e os aeroportos. - Mas não as fronteiras, julgo eu, - disse Paulo. - Não tenho a certeza. Como é que ela tenciona escapar? - Como sempre fez... - Duarte Nunes estava pensativo. - Bem. Mas isso não interessa agora. Vamos escrever um relatório. - Sobre quê? - Sobre tudo o que ela te disse, claro - explicou o sociólogo com um sorriso. - Mas não temos provas nenhumas, é tudo ouvir dizer, - notou Paulo tristemente. - É indiferente, temos uma prova: o relógio! - Mas, Diogo, não sabemos como funciona! - Mas alguém, num futuro próximo, poderá analisá-lo e ver como é que funciona. Serve de prova. Vá, mãos à obra. Paulo resmungou, mas obedeceu; encerrou-se no seu pequeno gabinete e começou a martelar na velha máquina de escrever umas notas. Blasfemou umas duas vezes por a SCE ainda não ter computadores em número suficiente para todos os funcionários e estava seriamente a considerar a hipótese de comprar um computador portátil, como fizera Duarte Nunes tempos atrás. Simplesmente nunca tivera paciência para o fazer e acabava sempre por voltar à velha Olympia. Escreveu durante vários dias, tudo o que se lembrava, e no final entregou o documento a Duarte Nunes, que passou a maior parte de uma tarde a examiná-lo. Depois arquivou-o secretamente, sem o conhecimento de mais ninguém, incluindo o próprio Paulo. Os militares, a pouco e pouco, começavam a convencer-se de que Paulo de facto nada tinha a ver com a fuga da extraterrestre, exceptuando como vítima. Da mesma forma que os oficiais envolvidos na segurança da base, e os que tinham liderado os pelotões em busca de recuperarem a fugitiva, acabaram por retirar as queixas contra todos. Não valia a pena insistirem mais no assunto. Myra continuava completamente desaparecida. Os dias retornaram à normalidade, com a confortável monotonia do dia-a-dia a retornar àquele escritório pequeno mas confortável algures por trás do Largo do Rato. Passaram-se semanas sem que Paulo ousasse perguntar a Duarte Nunes onde este tinha ocultado os documentos; mas o velho sociólogo apenas sorria. - Estão num lugar muito seguro, garanto-te! Paulo Vasconcelos perguntava-se a si mesmo o que aconteceria um dia se os militares resolvessem revistar em pormenor todos os arquivos da SCE. Sentiu um calafrio ao pensar que isso um dia pudesse ser verdade. Por outro lado, a PJ conhecia a maior parte dos relatórios da SCE, e estava um pouco farta de histórias de bruxas, de crimes cometidos por poderes parapsicológicos ou por magia negra, que consistiam o grosso do trabalho de investigação da Subdivisão de Crimes Extraordinários; provavelmente diriam aos militares que não valia mesmo a pena olharem para os seus arquivos. O jovem detective sorriu com a ideia.
Algum tempo depois, num dia frio de Dezembro, estava a almoçar sozinho no «Trapos» (o sociólogo tinha saído com Alves para estudar um caso de homicídio associado a práticas tribais africanas) e completamente absorto na contemplação de um livro que encontrara no gabinete de Duarte Nunes, quando reparou que o Sr. Vítor pousara na sua mesa um copito de amarguinha. - Não pedi isso, - protestou automaticamente, sem tirar os olhos do livro. - Com os cumprimentos daquela jovem, - explicou o empregado com um sorriso e um piscar de olhos. - Qual jo vem? - perguntou Paulo maquinalmente e levantou o olhar do livro. - Myra! - exclamou, estupefacto, reconhecendo-a de imediato. A jovem extraterrestre - porque não era outra senão ela - aproximou-se. Envergava um elegante vestido comprido, negro, bem justo, realçando a sua elegante figura. Saltos altos, uma bolsa queque, um chapéu tipo russo na cabeça, o lindo cabelo brilhante preso numa trança única, e Myra era a imagem da tia da Av. de Roma a fazer compras para o Natal. Sentou-se junto a Paulo e sorriu-lhe, divertida. - Olá, Paulo! Tudo bem contigo? - e deu-lhe um par de beijinhos na face, como se fossem velhos amigos. Paulo ficou atrapalhado, queria formular um milhão de perguntas ao mesmo tempo, mas não conseguiu dizer nada. Acabou por ser Myra a falar: - Venho apenas despedir-me, - disse ela, numa voz que pareceu a Paulo muito mais sensual desde a última vez que a vira; ou será que na altura não lhe tinha dado a devida importância? Não se conseguia recordar agora... - Despedir-te...? Onde estiveste este tempo todo...? - balbuciou Paulo, confuso. - Oh, aqui e ali, dei um saltinho pela Europa, pela Ásia e depois ainda visitei uns conhecidos em Los Angeles, que já não via há séculos... - disse, frívola, mas depois tornou-se mais séria. - Já arranjei boleia de regresso a casa, Paulo. Parto depois de amanhã, de algures no meio da Alemanha. Paulo nada disse. - Estes meses todos, nunca disseste nada, não escreveste como prometeste... - Tinha de ter a certeza de que estavas livre de suspeita, - disse ela. - Hm, o processo foi arquivado há meses, - explicou Paulo calmamente. Myra encolheu os ombros e sorriu. - Desculpa. Apenas soube isso ontem, quando cheguei cá. Estive em Munique a tratar da viagem de regresso, mas logo que tratei de tudo, ainda sobrou algum tempo para dar um salto a Lisboa e despedir-me... Paulo queria resmungar, queria protestar, queria insultá-la, mas na sua presença, não conseguiu dizer mais nada. - Pensas regressar? - perguntou, finalmente, cabisbaixo. - Oh, decerto que sim! - exclamou ela, deliciada. - Tenho algumas coisas para tratar em Andor: partilhas de terras devido ao falecimento de um tio meu. E tenho de mandar ir passear uns pretendentes... mas depois regresso, talvez lá para o Verão. - Pretendentes? - inquiriu Paulo. Myra corou. - Bem... há na minha família quem me queira ver casada, com filhos, assente de uma vez por todas... - Ah, estou a perceber. - Mas eu não quero, - explicou Myra rapidamente. - Por isso, sempre que a minha mãe ou as minhas tias casamenteiras me arranjam um pretendente, eu vou saír com ele durante umas semanas, sendo uma criatura perfeitamente detestável, até ele desistir de mim. - Riu-se. - Oh, sim, eu sei, sou uma pessoa horrível, mas não tenho vontade nenhuma de assentar, pelo menos nos próximos tempos... - És mesmo uma menina mimada, - observou Paulo com um sorriso. Ela encolheu os ombros. - C'est la vie, - disse, simplesmente, como se explicasse tudo. - Cada qual é como é, eu sou assim... - Olhou para o relógio. - Desculpa, Paulinho, mas tenho ainda compras para fazer, souvenirs para comprar à última hora para uns amigos, e tenho mesmo de me despachar. Foi um enorme prazer conhecer-te, a sério; não me vou esquecer tão depressa do que se passou... até à próxima, porque haverá de certeza uma próxima vez, até ao Verão, bom Natal, ciao! E levantou-se, deu mais um par de beijinhos discretos, e desapareceu de novo, como da primeira vez, a extraterrestre que detestava despedidas compridas. Paulo ficou a vê-la partir, a observar o aceno final com um sorriso.
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