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FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou
reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
ESTRUTURAS, ATORES E ANÁLISE
POLÍTICA
por Renato Monseff Perissinotto (Universidade
Federal do Paraná)
Argelina Cheibub Figueiredo é
atualmente professora da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
(NEPP), na mesma universidade, e do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP). Democracia ou reformas? Alternativas
democráticas à crise política: 1961-1964 é a versão em livro,
ligeiramente modificada, da tese de doutorado defendida pela
autora no departamento de Ciência Política da Universidade de
Chicago em 1987.
Percebe-se claramente que o livro é
fruto de um trabalho exaustivo de pesquisa empírica, recheado de
informações e entrevistas inéditas, onde Figueiredo promove uma
sistematização impressionante de dados a respeito do período, o
que faz dele, desde já, uma fonte obrigatória de consulta para os
estudiosos das condições prévias ao golpe de 1964.
A banca examinadora foi formada por
intelectuais de peso como Jon Elster e Adam Przeworsky, sendo este
último o prefaciador do livro.
A presença de Jon Elster e Adam
Prezwosky na banca julgadora torna-se compreensível a partir das
páginas introdutórias do livro. A autora usa as contribuições
desses autores para a análise do período político em questão. Para
uma maior compreensão da proposta de Argelina Figueiredo nesse
livro é interessante descrever brevemente as características
principais da "escola" à qual esses autores pertencem, apesar das
grandes diferenças entre eles: o "marxismo analítico". Não quero
dizer com isso que a autora se filie a essa corrente, mas
inegavelmente retira dos seus membros declarados indicações
metodológicas para o seu trabalho.
Podemos dizer que, guardadas as
diferenças entre os diversos intelectuais que o compõem, o
marxismo analítico pode ser identificado com três propostas
básicas. A primeira consiste em manter como objeto de estudo
central os temas substantivos do marxismo: luta de classes,
alienação, exploração, justiça, socialismo, etc. Segundo esses
autores, o marxismo tem muito a ensinar no que se refere aos
objetos de estudo relevantes na Ciência Social. A segunda proposta
reside na negação categórica de qualquer especificidade
metodológica exclusiva do marxismo. Para eles, por muito tempo os
marxistas se orgulharam de ter um método específico __ o dialético
__ em oposição ao método "viciado" das ciências sociais burguesas,
em especial o individualismo metodológico. Isso deve ser deixado
de lado já que a dialética não se presta senão à formulação de
frases obscuras e à elaboração de um pensamento pouco claro e, por
isso, pouco científico. Finalmente, como corolário da segunda
proposta, o marxismo deve adotar os métodos próprios daquilo que
eles consideram a "boa ciência social" e que, ainda segundo eles,
se expressa na conjugação do individualismo metodológico, da
teoria da escolha racional e da teoria dos jogos, ou teoria da
interdependência das ações, como Jon Elster prefere chamar esta
última.
O objetivo dessas três propostas é
fugir das explicações puramente funcionais, cabalmente rejeitadas
por Elster e aceita com restrições por outros autores, colocando
no seu lugar a busca incessante da revelação dos mecanismos que
dão origem aos fenômenos de ação coletiva e que permitem a sua
reprodução. Revelar esses mecanismos (o que só pode ser feito pelo
individualismo metodológico, pela teoria da escolha racional e
pela teoria dos jogos) é, para esses autores, o sentido mais exato
da palavra explicar. Não se deve pensar, contudo, que o marxismo
analítico consiste num elogio radical do individualismo e do
subjetivismo na ciência social. Mesmo para os autores mais
enfáticos, os fenômenos sociais não são totalmente redutíveis aos
indivíduos. Segundo Elster, por exemplo, tais fenômenos devem ser
pensados como sendo determinados por dois filtros. Um primeiro
filtro seria aquele constituído pelas condições objetivas,
exteriores aos indivíduos (econômicas, políticas, físicas, etc.),
condições estas que definem um conjunto possível de opções aos
agentes sociais, porém sem jamais definir um resultado determinado
a priori. O segundo filtro age através da seleção racional dos
atores, constituindo-se, assim, numa seleção dentro da seleção.
Frente às opções objetivamente determinadas, os agentes escolherão
racionalmente aquelas que eles supõem maximar as sua vantagens.
Evidentemente, esse processo de escolha é influenciado por uma
série de fatores (coleta de informações, percepção das opções,
estrutura de preferências, as opções dos outros agentes, os
cálculos dos agentes, etc.) que não cabe aqui analisar.
Não se trata, portanto, de opor
indivíduos e estruturas na explicação da ação coletiva, embora a
ênfase de alguns no individualismo metodológico deixe essa
sensação, mas de afirmar que na ocorrência desse fenômeno a
motivação e a ação individual são momentos fundamentais e,
portanto, devem estar no centro da explicação.
O objetivo de Argelina Figueiredo é
fazer a análise das crises políticas e de sua soluções a partir de
algo próximo desse tipo de proposta metodológica.
Segundo a autora, na literatura
existente sobre o golpe de 1964, podemos identificar dois tipos de
explicação: a estrutural e a intencional ou "orientada para o
autor" (p. 22). As explicações estruturais podem, por sua vez, ser
divididas em dois ramos. Um deles é o que enfatiza o papel dos
fatores econômicos na determinação dos eventos analisados. Nessa
linha destacam-se os trabalhos de Guillermo O'Donnell
(Modernización y autoritarismo e "Reflexiones sobre las tendencias
generales de cambio en el Estado burocrático-autoritário") e de
Fernando Henrique Cardoso ("Associated-dependent development:
theoretical and pratical implications"). Outra explicação, ainda
na vertente estrutural, é a que procura identificar nos fatores
político-institucionais as principais causas do golpe de 1964.
Aqui, o principal representante seria Wanderley Guilherme dos
Santos com o seu Sessenta e quatro: anatomia da crise.
Tanto a explicação estrutural que
privilegia as determinações econômicas como a que privilegia as
determinações políticas apontam, segundo Figueiredo, para a
inevitabilidade de um resultado autoritário. Para essas
explicações, o peso das determinações estruturais é tamanho que
acaba por reduzir o leque de alternativas a uma única possível: a
solução autoritária. O grande problema visto aqui por Argelina
Figueiredo é que em nenhum momento se revela como essa necessidade
se traduziu em ações sociais.
Também as explicações intencionais ou
"orientadas-para-o-ator" podem ser divididas em dois tipos. Um
primeiro tipo coloca ênfase nas conspirações direitistas contra
Goulart. O exemplo mais acabado dessa interpretação seria o livro
de René Armand Dreyfus 1964: a conquista do Estado. Ação política,
poder e golpe de classe. Outro trabalho que, embora mais nuançado,
segue esta mesma orientação é "Political leadership and regime
breakdown", de Alfred Stepan. Para esse autor, diz Argelina, a
causa fundamental que leva ao golpe de 1964 é a qualidade da
liderança de Goulart que sistematicamente minou todos os apoios
políticos existentes (p. 28).
A proposta de Argelina Figueiredo é
recusar a oposição entre esses tipos de abordagem. É certo que
para ela a análise do período deve concentrar-se "na conduta
estratégica de atores políticos em situações históricas
concretas... Assim, as escolhas deliberadas e intencionais feitas
pelos atores são o ponto de partida para a análise. A interação
entre as escolhas e as ações constitui o mecanismo capaz de
explicar a ocorrência de um resultado, dentre os diversos
possíveis" (p. 29). Não se trata, porém, de propor uma
interpretação puramente subjetivista do processo histórico.
Figueiredo reconhece, aliás como vários autores do marxismo
analítico, que as "tendências econômicas gerais bem como o
arcabouço político-institucional [devem ser] considerados como
constrangimentos às ações individuais" (p. 30), de onde se conclui
que devem fazer parte da explicação dos resultados finais. Ou
seja, algo bem próximo daquilo que Jon Elster chamou de primeiro e
segundo filtro, como vimos acima. Segundo esse ponto de vista, se,
por um lado, o resultado pode ser diversificado em função das
opções e estratégias dos atores, e por isso é fundamental
estudá-las, ele não é, por outro lado, totalmente aleatório, uma
vez que as determinações estruturais funcionam como limites, como
parâmetros definidores de opcões, estratégias e, portanto, de
resultados possíveis.
É exatamente aqui, ao meu ver, que o
livro de Argelina Figueiredo apresenta insuficiências. Apesar de
reconhecer o equívoco de se analisar processos políticos
exclusivamente em termos de explicações estruturais ou
intencionais, a autora elege os três seguintes aspectos como
fundamentais para explicar o processo político que conduz ao golpe
de 1964: 1) os objetivos corporificados nos diferentes projetos
políticos dos diferentes atores; 2) as estratégias adotadas pelos
atores políticos e o cálculo no qual se baseiam e 3) as ações
efetivamente implementadas pelos atores relevantes no sentido de
atingir seus objetivos (p. 30).
Como se percebe, a ênfase da análise
recai claramente sobre o conflito entre as estratégias dos atores
políticos. De fato, se, por um lado, o livro nos dá uma descrição
exaustiva das diferentes estratégias dos diversos atores políticos
(PTB, PCB, PSD, CGT, Goulart, militares, etc.) e de como essas
estratégias entram em rota de colisão, levando ao golpe — essa é a
essência da análise de Figueiredo -, por outro lado, não nos
explica que tipo de relação existia entre o elenco de opções e
estratégias possíveis e as condições estruturais gerais
(econômicas, políticas e ideológicas) da formação social
brasileira do período.
Não pretendo dizer com isso que a
autora promete algo e faz outra coisa no decorrer do livro. Como
vimos, ela lista expressamente na página 30 os aspectos que serão
enfatizados na análise do processo político em questão. O que
quero dizer é que esse tipo de abordagem não me parece adequado às
posiões teóricas dos autores que ela cita como inspiradores de sua
metodologia. Refiro-me aqui não à ênfase nas opções e estratégias
dos atores políticos (isto sim de pleno acordo com o que postulam
Elster e Przeworsky), mas sim à ausência absoluta daquilo que se
convencionou chamar de "determinações objetivas", isto é, aquilo
que independe da racionalização dos atores políticos. Todos os
autores vinculados ao marxismo analítico, inclusive um
individualista exaltado como Elster, reconhecem que existem
condições estruturais determinantes que são prévias ao jogo dos
atores e que, portanto, devem fazer parte da explicação dos
resultados. No seu "Marxism, Functionalism and Game Theory",
Elster diz que na explicação do comportamento dos agentes sociais
é de fundamental importância dizer algo sobre a formação de
preferências. Não basta dizer que os indivíduos agem
racionalmente, mas é preciso dizer também porque eles têm
determinadas preferências e não outras. Contudo, diz ele, a teoria
da escolha racional nada tem a nos dizer sobre isso senão tomar
tais preferências como dadas. Por sua vez, Adam Przeworsky, em
texto bastante conhecido, diz que "as posições nas relações
sociais estabelecem limites para o sucesso da prática política". Nota
1
É exatamente isso que não encontramos
no trabalho de Argelina Figueiredo. A ausência desse tipo de
análise acaba por deixar o livro bem próximo de uma crônica
política de feitio jornalístico, onde encontramos uma exaustiva
descrição dos diversos atores, das diversas estratégias, das
diversas ações e dos resultados. Acaba-se por contar a história e
não por explicá-la. N.
2 Revela-se, assim, os tão procurados "mecanismos", o "como"
as coisas aconteceram. Nada se diz sobre o "porque", isto é,
"porque" as estratégias escolhidas eram aquelas e não outras,
"porque" o movimento dos trabalhadores não conseguiu ir adiante,
"porque" as reformas de base eclodiram como uma reivindicação
justamente naquele momento, "porque" a democracia populista ruiu
como um castelo de cartas frente ao golpe, "porque" a esquerda
ficou impontente, etc. Ora, tais problemas não são esclarecidos
porque a teoria dos jogos não está habilitada para esclarecê-los.
Se ela pode dar conta da interdependência das ações e estratégias
dos diversos atores sociais, ela não é capaz, contudo, de levar em
consideração as determinações presentes desde antes do início do
jogo, como, por exemplo, o lugar dos atores na estrutura social,
os recursos disponíveis para cada ator em função daquele lugar, as
oportunidades apresentadas, as determinações das preferências etc.
Portanto, se o "resultado" é, em parte, determinado por fatores
prévios ao jogo entre os atores, uma explicação abrangente dos
fenômenos sociais, em geral, e das crises políticas, em
particular, deve, necessariamente, lançar mão de outras
ferramentas, além da teoria dos jogos. N.
3
Nesse sentido, tenho sobre o trabalho
em questão a mesma opinião de Fábio Wanderley Reis sobre a
produção da ciência política brasileira mais recente. Segundo ele,
"a situação prevalecente envolve [...] deficiências importantes. E
creio que uma conseqüência ou expressão bem clara de tais
deficiências é a feição historiográfico-jornalística que tendem a
exibir os trabalhos executados sob o rótulo de ciência política...
Com efeito, o trabalho empírico dos cientistas políticos
brasileiros dificilmente se pode distinguir, com freqüência, do
trabalho que se suporia fosse próprio do historiador da
política... As perguntas típicas, explícitas ou implícitas, a
orientarem tais trabalhos são do tipo o que? ou como? ("o que
aconteceu?" ou "como aconteceu"), nunca do tipo por
quê?...". N.
4
Se as tendências econômicas gerais bem
como o arcabouço político-institucional são constragimentos às
ações individuais ou grupais, como aliás reconhece a própria
autora, então a sua análise é fundamental para a compreensão do
resultado do processo político. Os constragimentos estruturais
(econômicos, políticos), penso eu, ajudam a compreender porque as
coisas aconteceram daquela maneira e não de outra.
O trabalho de Argelina Figueiredo,
repito, é fonte valiosa de informações a respeito do que ocorreu
no período que vai de 1961 a 1964, mas deixará nos seus leitores a
sensação de que falta algo a ser explicado.
Notas de rodapé:
1. Jon Elster. "Marxism,
Functionalim and Game Theory". Theory and Society. 11 (4),
Amsterdan/New York, 1982, pp. 453-482. Adam Przeworsky, "A
organização do proletariado em classe". In: Capitalismo e
social-democracia, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp.
67-120. Voltar
nota 1
2. Anthony Guidens diz, numa
crítica excessivamente retórica mas com um certo fundo de
verdade, que a teoria dos jogos, isto é, a teoria que procura
entender os fenômenos sociais como fruto da interrelação das
estratégias dos diferentes atores sociais, consiste em uma maneira
excessivamente complicada de chegar a conclusões bastante
conhecidas. Theory and Society, 11 (4), Amsterdan/New York, 1982,
pp. 527-539. De fato, dizer, como fazem os autores ligados a essa
corrente, que, na maioria das vezes, as ações heróicas trazem mais
prejuízos do que benefícios, que a busca de vantagens puramente
individuais pode levar a resultados coletivos catastróficos, que a
interação contínua e repetida facilita a ação coletiva dos
capitalistas ou que a expectativa dos atores em relação a um
movimento influencia diretamente no sucesso ou fracasso do mesmo
não é, convenhamos, dizer algo com muita força explicativa.
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nota 2
3. Esta é a posição de Offe
e Berger em texto de crítica às posições de Jon Elster. Para
esses autores, utilizar exclusivamente a teoria dos jogos para
explicar os fenômenos sociais implica em eliminar da agenda
explicativa os "elementos constituidores do jogo", isto é, "os
processos que não podem ser considerados como parte do jogo", e,
portanto, eliminar a possibilidade de explicar tais fenômenos
plenamente. Cf. Johannes Berger e Claus Offe, "Functionalism vs.
Rational Choice? Some Questions Concerning the Racionality of
Choosing One or the Other". Theory and Society, Amsterdan/New
York, 11, (4), pp. 521-526.Voltar
nota 3
4. Fábio Wanderley Reis, "O
tabelão e a lupa". Revista Brasileira de Ciências Sociais. 16
(6), jul./1991, p. 28. Voltar
nota 4
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