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03.11.2004

A Máscara de Dionísio

Publicado originalmente em 14-02-2004

À primeira vista, não tem nada mais estranho do que aproximar antigos deuses e conceitos da mecânica quântica. Essa estranheza, porém, se dissipa se lembrarmos que tanto a mitologia quanto a ciência são sistemas simbólicos cuja finalidade é uma descrição abrangente do universo, desde suas manifestações fenomênicas até seus fundamentos básicos. A linguagem da ciência é a matemática e a da mitologia são as metáforas e alegorias, mas a raiz de ambas é exatamente a mesma: do ponto-de-vista psicológico, o impulso humano para compreender o mundo e, do ponto-de-vista metafísico, o nível arquetípico da realidade, que a mecânica quântica sonda com ferramentas como a equação de onda de Schrödinger ou o contínuo espaço-tempo que Minkowski deduziu da teoria da relatividade de Einstein, e de onde se originam as imagens arquetípicas que aparecem na mitologia personificadas como deuses.

A mecânica quântica descreve uma realidade em (pelo menos) dois níveis. Quando não está sendo observada, ela existe sob a forma de uma nuvem de potenciais, onde todas as suas possibilidades se encontram amalgamadas. Ao ser observada, essas possibilidades se separam, a realidade assume características definidas e passa do virtual ao "real". A língua grega descreve a vida em (pelo menos) dois níveis. Zoé é a vida infinita e indefinida, que contém em si todas as formas de vida em potencial. Bíos é a vida limitada, a forma que zoé assume ao se localizar numa parcela delimitada do espaço e do tempo.


Essa passagem de um potencial ilimitado para uma existência que incorpora apenas um fragmento daquele potencial é indicada na mitologia grega pelo diasparagmós, o despedaçamento de Dionísio, o deus grego que era uma personificação de zoé. Existem várias versões mitológicas desse acontecimento, que é um aspecto central da religião dionisíaca e ao qual voltaremos mais tarde. Por enquanto, assinalemos apenas a analogia com o colapso da função de onda que, nessa mitologia contemporânea que é a mecânica quântica, também assinala a transição de um potencial ilimitado para uma existência concreta que é apenas um fragmento daquele potencial, comparável, como vimos no post anterior, à visão grega de zoé.


Para os seguidores de Dionísio, zoé continua sendo a verdadeira realidade, que nossas bíoi individuais apenas encobrem e disfarçam. Daí que todos os ritos dionisíacos - dos frenéticos e selvagens rituais primitivos das bacantes às sofisticadas cerimônias de iniciação do orfismo - sejam uma tentativa de quebrar os limites de nossa individualidade para se fundir na unidade cósmica de zoé. Como Georges Bataille mostrou em seu clássico O Erotismo - oportunamente relançado pela Arx ao preço nada oportuno de R$ 54,00 -, é essa busca de romper os limites que está na raiz tanto da pulsão erótica quanto do misticismo, de onde a forte ligação do dionisíaco com o sexo.


Daí também que um dos principais símbolos de Dionísio seja a máscara de madeira usada no culto do deus e que, mais tarde, quando as cerimônias dionisíacas derem origem à tragédia grega, se transformará na máscara do teatro que conhecemos até hoje. Como explica Carl Kerényi na obra definitiva sobre Dionísio, o significado dessa máscara é de caráter metafísico: "A zoé que está presente em todas as criaturas vivas torna-se uma realidade espiritual à medida que o homem se abre a ela, percebendo-a numa espécie de second sight. [...] Aos que não as usavam, as máscaras comunicavam uma estranha ambivalência de zoé, mostrando-a esquisitamente próxima e, ao mesmo tempo, remota. Esta impressão fazia o próprio deus, quando ele era apenas uma face. Ela aparecia então ao homem com características humanas, mais imediato que zoé em todas as suas outras formas, e no entanto sem vida, como se à parte de todo ser vivo."


A máscara de Dionísio, portanto, é um símbolo complexo que, de um lado, aponta para o fato de que este mundo que percebemos, composto por indivíduos isolados e objetos individuais, mascara a realidade espiritual de zoé e, do outro, sublinha que, por baixo dessa máscara, aquela realidade espiritual continua presente e pode ser percebida, nas palavras de Kerényi,
quando o homem se abre para ela. Essa abertura, mais do que qualquer manifestação carnavalesca e folclórica associada à expressão, é o verdadeiro traço que distingue o dionisíaco.


O resto é alegoria de escola de samba. ;-) 

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Os Illuminatti da Bavária

Se você curte ficção científica, gosta de RPG ou é afeito a teorias conspiratórias em geral, certamente já ouviu falar nos Iluminatti. Fundada em 1776, na Bavária, por Adam Weishaupt, a Ordem dos Iluminatti tornou-se o protótipo da sociedade secreta disposta a dominar o mundo e inspirou uma trilogia alucinante e alucinada de Robert Anton Wilson que, por sua vez, serviu de inspiração a um RPG criado por Nigel D. Findley. A imagem popular dos Iluminatti como personagens sinistros, ocultos nas sombras e manipulando os acontecimentos com uma influência sutil e pervasiva, porém, está muito longe da realidade e surgiu, de fato, da pena fantasiosa de autores de direita, que viam nas propostas
libertárias de Weishaupt uma ameaça ao status quo e fizeram o possível para desacreditá-lo junto ao público. Foi assim que Weishaupt, um estudante de jurisprudência apaixonado pelo iluminismo e pelos romances libertinos franceses, e dedicado ao propósito de "aperfeiçoar e enobrecer a humanidade", transformou-se em uma espécie de Fu Manchu avant la lettre. Muito pelo
contrário, a criação dos Iluminatti da Bavária marca uma das raras ocasiões em que as duas grandes tendências históricas nascidas do movimento gnóstico - o esoterismo e o anarquismo - tornaram a se encontrar.

Teologia negativa e exercícios espirituais. - Nascido em 1748, em Ingolstadt, Adam Weishaupt foi criado pelos jesuítas até completar 15 anos, quando entrou para uma faculdade de direito, onde se formou e, aos 24 anos, tornou-se professor de jurisprudência. Quatro anos mais tarde, à frente de um grupo de doze pessoas que denominavam a si mesmas de Areopagitas, Weishaupt criou uma sociedade secreta, batizada inicialmente de Perfeccionistas, devido a seu propósito de buscar o aperfeiçoamento do ser humano. Para eles, esse aperfeiçoamento passava pela ênfase no
livre-arbítrio e no uso da razão, que Weishaupt tomou dos Iluministas franceses, bem como pela obtenção da Iluminação espiritual que está no coração de todas essas religiões. Por esse motivo, não demorou muito para que a ordem fosse rebatizada como os Iluminatti, termo que traduzia o duplo significado - filosófico e místico - da iluminação.


O sentido místico dessa iluminação já estava presente no nome Areopagitas, referência a Dionísio, o Areopagita, a quem é atribuída a autoria de uma das obras fundamentais do misticismo cristão, De Mystica Theologia. Nesse livro, o pseudo-Dionísio (já que a obra é considerada apócrifa pelos especialistas) desenvolve a idéia de que Deus é a Suprema Realidade que, como tal, pode apenas ser experimentada, mas não descrita, já que Deus é infinito e a nossa linguagem, finita. Todas as descrições do divino, todos os atributos que lhe são adjudicados, até mesmo aqueles que se encontram nas Escrituras, são apenas aproximações, que devem ser abandonadas quando, por meio de uma longa disciplina espiritual, a alma se eleva acima das realidades transitórias deste mundo e torna-se capaz de contemplar Deus diretamente. Essa abordagem, que remonta ao gnosticismo valentiniano e encontra paralelos nas religiões orientais, na cabala judaica e em quase todas as correntes do misticismo, é conhecida como teologia negativa.


Os iluministas franceses, por sua vez, eram ou ateus declarados, como Diderot, ou teístas como Voltaire, que defendiam uma concepção racional de Deus, segundo a qual este se igualava às leis da Natureza. Teoricamente, nada poderia estar mais distante da teologia negativa do que isso. Mas para Weishaupt, talvez por sua educação jesuíta, as duas tendências não só podiam ser conciliadas como,
de fato, eram complementares. De fato, a Companhia de Jesus nasceu de uma experiência mística sofrida pelo soldado espanhol Iñigo de Loyola que, depois de sua conversão, adotaria o nome de Ignácio e seria canonizado pela Igreja. Santo Ignácio, no entanto, tinha uma mente analítica e tratou de sistematizar uma técnica mediante a qual, por meio de uma série de práticas regradas e visualizações dirigidas, qualquer um poderia chegar a uma experiência semelhante à dele. Nasciam assim os Exercícios Espirituais, um verdadeiro sistema ocidental de ioga, que ninguém menos do que Israel Regardie - um dos grandes responsáveis pelo renascimento da magia cerimonial no século XX - considerava uma ferramenta essencial para treinar a imaginação na prática da magia.


Embora não existam registros históricos - até porque, no que tange a essa ordem, todas as informações são vagas e nebulosas -, é razoável supor que Weishaupt tenha adotado os Exercícios Espirituais como parte da prática dos Iluminatti.


Maçonaria. - Além dos jesuítas, iluministas e místicos cristãos, outra influência de peso nas idéias de Weishaupt foi a Maçonaria. Surgida a partir das guildas de construtores da Idade Média - que evoluíram do gnosticismo, do qual conservaram boa parte do simbolismo e das doutrinas -, a Maçonaria era, no século XVIII, uma ordem comprometida com os mesmos ideais de Weishaupt e desempenhou um papel fundamental na Revolução Francesa e nas lutas pela independência das colônias americanas. Praticamente todos os founding fathers dos Estados Unidos, inclusive George Washington e Thomas Jefferson, eram maçons e é por isso que, até hoje, as notas de dólar trazem um selo com o Olho que Tudo Vê pairando sobre uma pirâmide. O olho luminoso inscrito num triângulo é um símbolo maçônico de Deus e a pirâmide representa, entre outras coisas, a identidade última do espírito (o triângulo) e da matéria
(quadrado).


Dos maçons, Weishaupt pegou emprestada a estrutura da organização, dividida em vários graus, aos quais os membros iam ascendendo por uma série de iniciações sucessivas. Foi de lá também que veio a idéia de sinais de identificação, senhas e apertos de mão secretos pelos quais os Iluminatti identificavam uns aos outros em público. É possível que boa parte do simbolismo gnóstico-alquímico da
Maçonaria também tenha sido absorvido por Weishaupt, que se tornou maçon em 1777, um ano após a criação dos Iluminatti, possivelmente com o objetivo de usar essa sociedade secreta a fim de recrutar novos membros para sua própria ordem.


Com ou sem a ajuda da Maçonaria, o fato é que os Iluminatti cresceram e se estenderam para outros países, conquistando adeptos entre a nobreza européia e inclusive dentro do clero. E foi aí que os problemas começaram.


O Fim dos Iluminatti. - O século XVIII foi um período de grandes turbulências políticas e sociais. A revolução burguesa avançava a pleno vapor, substituindo os nobres como classe dominante e solapando os governos e instituições que tinham na nobreza o seu ponto de apoio. Nesse clima, é óbvio que nem a Igreja nem o Estado viam as sociedades secretas com bons olhos, mesmo
que - ou até porque - muitos de seus membros fossem filiados a grupos ocultistas. Foi um desses agentes duplos, o Pe. Cosandey, que a Igreja resolveu espremer em 1785 para descobrir tudo o que pudesse sobre os Iluminatti. E Cosandey não se fez de rogado. Não se sabe o quanto de seu depoimento correspondia à realidade e o quanto era uma fantasia destinada a dar a seus inquisidores o que eles queriam ouvir.


Seja como for, Cosandey contou histórias de arrepiar os cabelos dos padres. Falou sobre as orgias praticadas pelo círculo interno da ordem - os Areopagitas originais - e declarou que eles eram, ou pretendiam ser, imortais. De acordo com Cosandey, os Iluminatti haviam tomado a Maçonaria e outras ordens similares, que não passavam de cobertura para os planos de Weishaupt, e pretendiam fazer a
mesma coisa com a Igreja. Era o pretexto de que as autoridades eclesiásticas precisavam para mover uma perseguição sem tréguas aos Iluminatti.


A situação agravou ainda mais os crescentes conflitos entre os Areopagitas. Um ano antes das revelações do Pe. Cosandey, o Barão von Knigge, que era o encarregado de recrutar novos membros entre a nobreza e o clero, desligou-se dos Iluminatti depois de se desentender com Weishaupt. Seu exemplo foi seguido por outros e, de repente, as ruas da Bavária se viram inundadas com panfletos
difamando Weishaupt e a sociedade que ele havia criado. Com base nessas acusações, o governo bávaro colocou todas as sociedades secretas na ilegalidade. Recrutar novos membros tornou-se um crime capital, punido com a decapitação, e os principais integrantes, entre os quais o próprio Weishaupt, foram exilados depois de terem seus bens expropriados pelo Estado.


Mais tarde, essas medidas foram abrandadas, os exilados tiveram suas penas comutadas e puderam voltar para casa - com exceção de Weishaupt, que morreria no exílio em 1830. A pressão fez com que a ordem fosse minguando, até sair da vida para entrar na história. Exceto, claro, para os teóricos da conspiração. Segundo eles, os Iluminatti apenas simularam seu desaparecimento para escapar à perseguição e continuariam até hoje como eminência parda por trás de cada acontecimento suspeito no mundo. Para eles, não é coincidência que o Dia Internacional do Trabalho ainda seja comemorado na mesma data em que os Iluminatti foram fundados: 1º de maio.


A iluminação universal. - Mas, afinal de contas, o que os Iluminatti pregavam de tão subversivo, para que tenham se transformado no bicho-papão absoluto dos paranóicos de direita? A resposta é: a mesma coisa, nem mais, nem menos, que algumas décadas depois se tornaria o núcleo do pensamento anarquista. "O Homem não é mau a menos que seja levado a isso por uma moralidade
arbitrária", declarava Weishaupt, traindo Rousseau como sua leitura de cabeceira. "Ele é mau porque a religião, o Estado e os maus exemplos o pervertem. Quando, finalmente, a razão se tornar a religião do Homem, este problema estará resolvido."


Parece uma declaração mais do que razoável, assim como a profissão de fé antipatriótica dos Iluminatti, para os quais "o nacionalismo é uma prisão" e "o patriotismo é um obstáculo à solidariedade entre os homens". Não seriam as vítimas de cada genocídio jamais perpetrado desde a aurora dos tempos que estariam em condições de discordar.


Na visão dos Areopagitas, o nacionalismo, assim como as crenças da religião organizada, o próprio Estado, a família e a propriedade privada, não passam de instrumentos de manipulação criados para manter a humanidade numa condição de perpétua ignorância: "As pessoas são crianças crescidas, que deveriam ser libertadas da tutela dos reis e dos príncipes."


Em outras palavras, a meta dos Iluminatti era uma sociedade sem classes, sem estado e sem fronteiras. Para atingir esse objetivo, era preciso, antes de mais nada, libertar o ser humano dos condicionamentos impostos pelos donos do poder. E é aí que entrava a Iluminação, entendida ao mesmo tempo como uma emancipação filosófica e uma transformação espiritual: "A iluminação universal torna as nações e os governantes supérfluos."


Nada poderia ser mais ofensivo aos donos do poder do que essa proposta. Nada poderia ser mais assustador para os que cresceram acreditando que os Pais da Pátria devem tomar todas as decisões por nós. Nada poderia ser mais ameaçador para todos os pequenos e grandes tiranos, que se aproveitam da dependência artificial imposta à humanidade a fim de construírem seus feudos e alimentarem seus lucros. Nada poderia incomodar mais aos autoproclamados vigários de Deus na Terra, para os quais Deus não é o nome de uma realidade incompreensível, acessível apenas mediante a Iluminação, mas um soberano celeste ciumento e vingativo, do qual alegam emanar a autoridade que exercem.


Contrariando tantos interesses, não é de admirar que os Iluminatti fossem demonizados por seus adversários. O que causa espanto é que, para isso, estes tenham projetado sobre Weishaupt e seus Areopagitas uma caricatura não do que eram os Iluminatti, mas dos monstros ávidos de poder que eles próprios são.

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O Ilimitado

Uma vez que, para descrever a natureza da superposição coerente, Heisenberg ressuscitou o conceito grego de potência (em grego, dynamis, mas Heisenberg geralmente o cita pela tradução latina, potentia), talvez valha a pena fazer uma breve arqueologia dessa noção na filosofia grega, a fim de visualizarmos melhor o que é essa misteriosa condição que a matéria assume quando não está sendo observada, uma condição tão misteriosa, de fato, que perde qualquer semelhança com a idéia de matéria que fazemos no dia-a-dia e se aproxima suspeitosamente do que as religiões e o esoterismo costrumam designar pelo nome de espírito.


A matéria primordial. - Essa visita às raízes gregas da teoria atômica está longe de ser irrelevante. Heisenberg dedica um capítulo inteiro de seu Física e Filosofia às diferentes visões que os antigos filósofos tinham do átomo e sua preocupação central está em ressaltar, não o quanto a física moderna avançou em relação a eles, como geralmente ocorre nos livros escolares, mas, pelo contrário, o quanto nossas concepções continuam semelhantes às de pensadores como Heráclito, Platão e Aristóteles. A exceção, curiosamente, é Demócrito que, como aprendemos no ginásio, é considerado o pai do atomismo, mas cuja visão excessivamente materialista desagradava a Heisenberg. De fato, uma nota dos editores no final do livro especifica: "A partir de 1953, Heisenberg praticamente isolou-se da principal corrente de pesquisa, no campo da física das partículas elementares, ao insistir na formulação de uma teoria que não fizesse uso de constituintes elementares (não aceitando, portanto, a visão atomista de Demócrito) mas que descrevesse o comportamento da matéria em geral, a qual derivaria da matéria primordial, a que deu o nome, em alemão, de Urmaterie. As partículas observadas na Natureza seriam manifestações dessa matéria primeira, a qual obedeceria a uma equação de campos, não linear, dotada de algumas simetrias que Heisenberg julgava básicas. Esse ponto de vista corresponderia ao conceito de estrutura da matéria defendido por
Anaximandro."


Antes de prosseguirmos, convém frisar que o "isolamento" de Heisenberg mencionado pelos editores é bastante relativo. A teoria quântica dos campos e a eletrodinâmica quântica, desenvolvidas por Richard Feynman, são uma parte integrante da "principal corrente de pesquisa" em física das partículas e também partem do pressuposto de que as partículas são manifestações pontuais de campos de forças. Da mesma forma, a teoria das supercordas pressupõe que o que observamos sob a forma de partículas são vibrações de uma entidade primordial, filamentos unidimensionais de energia que vêm a ser precisamente as supercordas que dão nome à hipótese. Por outro lado, não me parece coincidência que Heisenberg tenha batizado essa matéria primordial com uma expressão repleta de ressonâncias alquímicas: Urmaterie é nada menos que a tradução literal para o alemão do latim prima materia. E, assim como a matéria primordial de Heisenberg, a matéria prima dos alquimistas remonta igualmente às especulações do filósofo grego Anaximandro de Mileto.


Um fornecimento infinito de substância básica. - Anaximandro viveu no século VI a.C. em Mileto, uma das colônias gregas na Ásia Menor. Em vista das reflexões que estamos desenvolvendo a respeito de Dionísio e a superposição coerente (ver os posts "A Vida Indestrutível" e "A Máscara de Dionísio"), vale a pena mencionar que, embora tenha se originado provavelmente em Creta, durante os tempos da civilização minóica, a Ásia Menor foi o grande centro de difusão da religião dionisíaca para o mundo grego. Não há de ser por acaso, portanto, que a matéria primordial de Anaximandro seja descrita em termos bastante semelhantes aos que segundo Kerényi caracterizam zoé, a vida em sentido amplo, da qual Dionísio era uma personificação. Vimos que zoé era concebida pelos gregos como sendo ilimitada, e é essa mesma a principal característica que Anaximandro atribuía à matéria primordial: "Para Anaximandro", lemos na introdução do volume da coleção Os Pensadores dedicada aos Pré-Socráticos, "o universo teria resultado das modificações ocorridas num princípio originário ou arché. Esse princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito e/ou ilimitado."


De acordo com F. E. Peters, a idéia de ápeiron de Anaximandro incluía "um fornecimento infinito de substância básica 'para que a geração (genesis) e a destruição (phtora) não faltem' (Aristóteles, Physica, III, 203b)" e "a indeterminação, i.e., a ausência de limites internos dentro dos quais os simples corpos físicos, o ar e a água ainda não estivessem distintos entre si". Essa distinção entre uma arché ilimitada e os corpos físicos com limites internos que ela produz é, uma vez mais, a mesma que encontramos em Kerényi entre zoé e bíos, as vidas individuais, circunscritas a uma porção delimitada de espaço e de tempo. Na religião dionisíaca, já vimos antes, essa
distinção era interpretada como se as bíos fossem máscaras, disfarces que encobriam a natureza ilimitada de zoé.

Posted by Malprg at 02:39 PM in Dionísio e o dionisíaco, Filosofia, Metafísica quântica e relativística, Mitologia, Religião | Permalink | Comments (0) | TrackBack