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Com este texto lembrámos o armistício entre os aliados e o império alemão (o fim da primeira guerra mundial) | O vocábulo guerra deriva do
germânico werra — grito de combate —, que dá, no baixo latim,
guerra, no francês, guerre, no alemão, wehr, no
inglês, war, no espanhol, no português e no italiano,
guerra. O fenómeno G. dá-se praticamente em todas as sociedades,
desde as mais arcaicas às mais modernas, em todas as civilizações e em
todas as épocas. Tal constância e universalidade tornam a sua percepção
fácil e intuitiva. Quando se
trata, porém, de o definir com rigor, começam as dificuldades.
Acontece-lhe algo de semelhante àquilo que Santo Agostinho
diz a respeito do tempo: «Se não me
perguntam, sei o que é; se me perguntam, deixo de o saber.» Daí a grande
variedade de definições
dependente da perspectiva em que se coloca o analista, da amplitude do
fenómeno e da escolha de determinado factor explicativo.
Esse factor pode ser: 1) ou a «lei divina» imanente: assim, v. g., a concepção helénica simbolizada no deus Ares, a concepção germânica hipostasiada no deus Votan, a teoria de Heraclito de Éfeso, que declara «o combate pai de todas as coisas e de todas as coisas rei» (D-K, B 53), a teoria de Hobbes do bellum omnium contra omnes, como «estado de natureza», a teoria de Hegel, que afirma ser «a guerra o momento em que a idealidade do ser particular recebe aquilo que lhe é devido e se torna realidade», a teoria daqueles que, na linha de Heraclito e Hegel, vêem na G. «o motor da História»; 2) ou a «lei divina» transcendente: assim, v. g., em certas passagens da Bíblia, em que a G. aparece ou como castigo do pecado ou como modo de obedecer ao preceito de Javé, e na «guerra santa» do Alcorão; 3) ou como «leimoral», na dialéctica do crime e do castigo; 4) ou como «lei biológica», quer esta se entenda como necessidade de destruir os «excessos demográficos», necessidade que aparece como «função social recorrente» periódica (G. Bouthoul), quer ela seja tomada como a força, por excelência, da expansão da humanidade na luta pelo melhor; 5) ou como «lei psicológica», na realização de certos instintos fundamentais do homem — a agressividade, a «vontade de domínio», a ambição, o apetite de coesão, na eminência do contrário, sobretudo, o desejo da «festa» e da exaltação colectiva — e na libertação de ódios, de medos» de ressentimentos e de complexos de culpa recalcados; 6) ou como «lei económica»: quer para quebrar o círculo da miséria, quer para expandir a abundância (liberalismo), quer para obviar, pelo imperialismo, à queda do capitalismo (Marx e Lenine), quer para, graças à revolução, operar a libertação dos povos oprimidos (Lenine e Mao Tsé-Tung); 7) ou como «lei ideológica» da própria difusão; 8) ou como vontade política que, na impossibilidade de se impor de outro modo, se afirma pela violência. É desta última causa que se arrancam as famosas definições de von Clausewitz, repetidas, c. um século mais tarde, por Lenine e Mao Tsé-Tung: «A guerra é uma simples continuação da política por outros meios» (De Ia guerre, trad. fr., Paris, 1955, p. 67) e: «A guerra é um acto de violência destinado a obrigar o adversário a fazer a nossa própria vontade» (ibid., p. 51). Analisar as causas da G.
torna-se de necessidade imprescritível porque só a partir daí é que pode
nascer alguma probabilidade de a suprimir ou de notavelmente lhe diminuir
a frequência e os efeitos funestos. «As guerras — diz o texto instituidor
da Unesco —,
originando-se no espírito dos homens, é no espírito dos homens que devem
ser erguidas as defesas da paz...». Ou, mudando um velho adágio latino:
"Si vis pacem, nosce bellum.» Hoje, porém, no estado do
conhecimento a que chegámos, apesar do muitíssimo que acerca da G. se
escreve, não é possível ainda dar ao fenómeno uma definição capaz. O mais
que é permitido dizer é que se trata de uma função social expressiva da
violência armada entre grupos humanos organizados, função com múltiplas
variáveis, que vão desde a teologia à economia,
passando pela psicologia, a política e a ideologia. Perante tal facto, a
pergunta fundamental é a seguinte: será tal função substituível ou, pelo
contrário, estará a humanidade condenada a suportá-la como parte
integrante do seu próprio ser? A resposta não pode ser nem utópica nem
fatalista. Como outros flagelos de que a humanidade se libertou, embora em
certas épocas eles parecessem inerentes à sua condição, também, em
princípio, ela se poderá libertar da G. A função social, que a G. é, pode
ser substituída por uma adequada educação dos instintos que a provocam,
pela criação de organismos internacionais eficazes que à violência
façam suceder a arbitragem, pela supressão das outras causas, sociais e
económicas, que estão na sua origem. Mas do poder ser ao ser a distância é
grande.
(M. Antunes in Logos) |
Início do texto |
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O que releva do militar depende daquilo que o funda, a saber: o exército (miles em latim), ou seja, o conjunto organizado dos meios humanos e dos seus equipamentos que um Estado, um povo ou, por extensão, qualquer outra comunidade emprega para impor a sua vontade pela força ou pela ameaça do exercício desta. Depende portanto igualmente do exercício ou do não-exercício desta força, o que significa da guerra e da paz. Tem-se feito remontar a guerra à acumulação de reservas durante o Neolítico (III milénio), e a arqueologia mostra que se trata de um fenómeno endémico a partir da Idade do Bronze. A reflexão teórica sobre o militar começa por investir ou uma problemática jurídico-moral, ou uma tecnologia da guerra.Sócrates contentava-se com ser um bom soldado e defender a sua pátria, Aristóteles justificava a escravatura baseada na guerra. Para os filósofos gregos, a guerra, ofensiva ou defensiva, não parece assim constituir problema: é que enquanto o exército é formado pelos cidadãos em armas, não existe domínio militar específico por oposição ao civil; existe apenas a cidade, por vezes tranquila, quer dizer em paz, mas o mais das vezes em armas, revelando-se a guerra como o modo de coexistência e de relação mais frequente entre as populações vizinhas da Antiguidade. É somente com o desfecho da Guerra do Peloponeso (431-404 a. C.: vitória de Esparta sobre Atenas) e sobretudo a partir do século IV a. C., nomeadamente devido à epopeia de Alexandre o Grande (356-323 a. C:) e à criação de verdadeiros exércitos profissionais, que se imporá uma especificidade do militar, do que ao tempo nos dá testemunho o Tratado de Defesa das Praças de Eneias o Táctico, primeira obra de poliorcética (arte de sitiar uma cidade). Os Romanos, que dispunham ao mesmo tempo de uma estrutura política assente no direito e de uma organização militar poderosa assegurando-lhes a extensão e defesa do império, foram obrigados a pensar a relação entre as duas coisas no interior de um mesmo Estado. Cícero, confrontado com o golpe de Estado de César, que se apoiava nas suas vitórias no exterior, opunha-lhe o princípio da subordinação do militar ao político. Os estados europeus constituíram-se por meio da conquista e da violência. As religiões justificam frequentemente certas guerras (guerras santas islâmicas, cruzadas cristãs), embora algumas condenem em absoluto a legitimidade da violência (certos movimentos protestantes do Renascimento opuseram aos seus príncipes uma objecção de consciência e os seus membros recusaram-se a pegar em armas). A problemática da guerra justa deve-se aos autores medievais.
Segundo São Tomás de Aquino, uma guerra para ser justa, deve preencher as condições seguintes: a) ser declarada por uma autoridade legítima; b) sê-lo por uma causa justa; c) ser conduzida sem ódio e excluindo a mentira (cf. Suma Teológica, II, ii, 40). Foi com o desenvolvimento da escola do direito natural — depois de se ter colocado a questão do extermínio dos índios da América (cf. F. Vittoria, De Indis et de jure belli, 1538) — que se constituíram os primeiros lineamentos de uma reflexão mais geral, referente à existência do direito de conquista e às suas consequências. O consensualismo exclui que a violência possa fundar qualquer legitimidade; para os teóricos do contrato social, a conquista não dá origem a qualquer direito (o que, em Rousseau, se torna argumento contra a escravatura). Se as Luzes vêem nascer os projectos de paz perpétua entre as nações (abade de Saint--Pierre, Kant), nem por isso excluem a existência de guerras justas em casos que ainda hoje são muitas vezes admitidos (defesa, libertação, revolução contra a opressão). A avaliação moral da guerra depende não apenas dos seus fins, mas do facto de ela ser, em si própria, horror e violência, e, por conseguinte, do estatuto que se atribui a esta última. O pacifismo extremo assenta na recusa absoluta da violência. Pelo contrário, Nietzsche, que fez da força um valor moral, vê na guerra um dos mais fortes estímulos para a imaginação. A técnica da guerra foi
durante muito tempo concebida como uma arte das batalhas. Esta perspectiva
é manifestamente insuficiente quando observamos que as guerras implicam os
estados-nações na sua totalidade (o que levava já Maquiavel a
preconizar exércitos nacionais). É claro então que a guerra é a
continuação da política por outros meios [1] e que
exige uma reflexão mais elaborada. Na sequência da Segunda Guerra Mundial,
esta reflexão fez-se ou no interior de uma disciplina, que proclama a sua
neutralidade axiológica quanto ao fenómeno e pretende estudá-lo em si
próprio, a polemologia[2], ou no
quadro do trabalho dos próprios militares, tentando conseguir mais
eficácia. As construções estratégicas que daqui resultaram — e que fazem
parte integrante de uma política de Estado — utilizam os meios mais
sofisticados das ciências humanas e das técnicas modernas (não já a
geografia apenas, mas também a economia e a teoria dos jogos[3], a informação e a
propaganda). Para além de terem surgido novas formas de luta armada
(guerrilha, terrorismo) ou da necessidade de recurso à violência por parte
da população civil (resistência passiva, fortificação social), emergiram
também novos conceitos. Em primeiro lugar, a importância do elemento simbólico que
antecipa o recurso à guerra de armas e o torna inútil (dissusão), elemento
que vale sobretudo quando a guerra se mostra onerosa tanto para o atacante
como para o atacado (armamento nuclear). Em seguida, uma coisa em função
da outra, a corrida aos armamentos e à tecnologia. Estes novos dados
permitiram sem dúvida salvaguardar os territórios ocidentais da guerra,
precisamente na altura em que se desenvolvia uma luta de Estado contra o
Estado (guerra fria) que dominou durante cerca de cinquenta anos a cena
política mundial. Mas desenvolveram ao mesmo tempo, incontestavelmente, a
importância do sector militar nas mesmas sociedades: constituição de
complexos militar-industriais (armamento, electrónica, aviação, indústria
nuclear) que pesam nas opções económicas e ficam muitas vezes ao abrigo de
efectivos controlos democráticos.
Estes complexos orientaram os investimentos públicos à custa de outros
sectores (saúde, educação, ambiente) e favorecem certos ramos da
investigação científica (física atómica, conquista espacial): Diz-se
que a paz reina quando o comércio entre as nações não inclui as formas
militares da luta (R. Aron). É na paz, que talvez só ela possa
garantir (a importância da dissuasão é o principal argumento contra o
pacifismo extremo que preconiza o desarmamento, uma vez que a referência
ao papel de motor da indústria de guerra na investigação científica e na
economia é um argumento muito mais discutível[4]), que a
ordem militar se torna sem dúvida um problema maior.
Notas
(Sylvain Auroux e Yvonne Weil
- Dicionário de
Filosofia) |
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